Mariana Mortágua demitiu-se da liderança do Bloco de Esquerda, deixando para trás um partido mais pequeno, mais barulhento e menos relevante. O seu legado cabe hoje num rodapé de manual de História Contemporânea e num retrato com moldura vermelha na sede do partido, onde as paredes ainda ecoam os gritos de “resistência” e “igualdade”, agora em versão museológica.
A irmã, Joana, continua por lá, fiel ao script familiar: o mesmo tom indignado, as mesmas frases feitas, o mesmo léxico de barricada. São gémeas não só de ADN, mas também de pensamento, discurso e intensidade vocal, o que torna qualquer debate com ambas uma experiência quase paranormal. Ouvi-las é como estar preso num loop ideológico: dois corpos, uma só ideologia, em estéreo.
Dizem que Mariana sai para “refletir o futuro da esquerda”. Talvez. Mas quem ouviu uma, ouviu as duas. E quem ouviu as duas… dificilmente se esquece.
A origem do mito, com cravos na lapela e pistolas no bolso
Nas pradarias politizadas de Portugal, onde ainda se bate a pala à memória do 25 de Abril, emergiu uma linhagem política peculiar: as irmãs Mortágua. Filhas de Camilo Mortágua, revolucionário, resistente antifascista, assaltante de bancos e ocupante da Herdade da Torre Bela, Mariana e Joana não tiveram escolha: em vez de legos, brincavam com a Constituição de 1976. Cresceram embaladas entre a retórica marxista e os ecos de um PREC que nunca saiu verdadeiramente da sua sala de estar.
Até nas brincadeiras havia doutrina. Enquanto outros miúdos jogavam ao Monopólio, elas expropriavam o tabuleiro por ser um instrumento de propaganda capitalista. As Barbies eram proibidas por promoverem padrões de beleza ocidental e submissão feminina ao olhar paternalista do patriarcado neoliberal. Cresceram não a sonhar com príncipes, mas com revoluções bem financiadas, desde que não viessem do FMI.
Camilo assaltava bancos por convicção. As irmãs Mortagua assaltam a narrativa política com indignação programada e um olhar severo. O saque hoje é simbólico: não se retiram notas de cofres, retiram-se direitos de propriedade com manifestos e cartazes reciclados.
A estagiária
Mariana Mortágua, a mais visível da dupla, formou-se em Economia, o que num país como Portugal é uma decisão tão ousada como abrir uma loja de surf na Cova da Moura. Doutorou-se na School of Oriental and African Studies de Londres, hoje epicentro do pensamento anticapitalista, mas outrora criada para formar administradores coloniais, comerciantes imperialistas e missionários do Império Britânico. Uma escola nascida para ensinar a dominar os povos, agora especializada em denunciá-lo. Onde antes se aprendia a explorar mercados exóticos, hoje aprende-se a odiar todos os mercados, com um sotaque impecável.
A sua tese de doutoramento é académica, sóbria e respeitável. Estuda o capitalismo rentista português, esse milagre à portuguesa onde se lucra sem produzir e se gere sem arriscar. Denuncia a captura do Estado pelos interesses privados com detalhe e rigor. Até aqui, aplausos.
Mas depois a tese transforma-se em mural de parede. A análise estrutural dá lugar ao soundbite. “Taxar os ricos!” substitui “reformar o sistema fiscal”. “Fim ao alojamento local!” ocupa o lugar de “regulação equilibrada do mercado imobiliário”. “A culpa é do capital!” serve de rodapé emocional para qualquer gráfico mais complexo. A economista deu lugar à justiceira. A Mariana da biblioteca foi engolida pela Mariana do megafone.
Aos 27 anos entrou no Parlamento e nunca mais saiu. Não conheceu chefes, nem recibos verdes, nem horas extraordinárias, apenas o plenário, os megafones e a glória de denunciar “os de cima” com a certeza de quem nunca lá esteve. O seu Excel da vida profissional tem duas colunas: “Intervenções parlamentares” e “Propostas que não passaram”.
A classe trabalhadora segundo Santa Mariana
Enquanto os liberais dizem “todos podemos ser ricos”, Mariana responde: “stop it!”. O novo dogma da esquerda radical é simples: nasceu pobre, morre pobre, vota BE e não te armes em empreendedor. Sonhar é neoliberalismo. Tentar enriquecer é traição ideológica.
Segundo Mariana, a classe trabalhadora sofre de crise de identidade. O que é grave não é ser pobre, é não querer sê-lo. A verdadeira heresia é tentar subir na vida. O Bloco representa os pobres, desde que se comportem como pobres: calados, submissos e dependentes da tutela do Estado. Se algum resolve investir, empreender ou comprar uma casa… vira automaticamente capitalista, explorador e, com azar, alvo de uma manifestação ou “cancelamento“.
No universo de Santa Mariana, um canalizador que poupa para abrir a própria empresa é uma espécie de herege fiscal. Uma cabeleireira que abre dois salões e emprega vizinhas vira, subitamente, um tentáculo do neoliberalismo. A ascensão social, que noutros tempos era celebrada como progresso, é agora suspeita, quando não é abertamente denunciada como traição de classe. O trabalhador ideal não ambiciona, não investe, não cresce: apenas resiste, sofre e vota no Bloco.
Ideologia à prova de água
Há momentos na vida política que desafiam a lógica, o decoro e a meteorologia. No caso de Mariana Mortágua, esses episódios são frequentes e deliciosamente surreais.
Num verão qualquer da luta internacionalista, a deputada embarcou numa “flotilha humanitária” rumo a Gaza. O gesto era nobre, o simbolismo épico, e a utilidade… mais modesta que um panfleto molhado. Foram semanas a bordo, milhares de euros em logística, meia dúzia de mantimentos e toneladas de indignação fotogénica. A esquerda que acusa a direita de instrumentalizar tudo não hesitou em fazer do sofrimento alheio o cenário ideal para selfies revolucionárias. Enquanto o Parlamento reabria em Lisboa, a única deputada do Bloco navegava longe, no GPS moral da política simbólica.
Durante uma marcha, Mortágua insurgiu-se contra a “chuva machista”, apregoando: “Não há chuva machista que molhe feminista”. Uma demonstração de que, em certos quadrantes ideológicos, nem a meteorologia escapa ao patriarcado. Cada gota, uma opressão. Cada nuvem, uma microagressão. Faltou apenas exigir quotas climáticas e paridade no índice pluviométrico.
Entre uma flotilha inútil e uma tempestade imaginária, Mariana construiu o seu próprio género político: o surrealismo de protesto. Onde outros veem o mundo como ele é, ela vê um palco para moralismos flutuantes, sempre prontos a zarpar rumo ao trending topic do dia.

As contradições do Bloco de Esquerda
Se há algo que o Bloco de Esquerda defende com fervor revolucionário é a protecção das trabalhadoras grávidas… desde que não sejam suas. Quando rebentaram denúncias de despedimentos de funcionárias-mãe dentro da sua própria estrutura, a resposta foi digna de um patrão com gravata do Continente: silêncio, tecnicalidades jurídicas e uma citação seca do Código do Trabalho. Solidariedade para fora, folha de cálculo para dentro.
Catarina Martins, ex-coordenadora do partido e defensora acérrima do combate ao alojamento local, é sócia minoritária de uma empresa que explora alojamento local… no interior do país. Fundou com o marido uma empresa, que explora empreendimentos turísticos e uma unidade de alojamento local. Em 2009, a empresa aprovou um projecto de recuperação de antigos palheiros ao abrigo de fundos europeus e recebeu 137 mil euros a fundo perdido do QREN. Ou seja, turismo com selo comunitário, desde que seja na aldeia.
A justificação oficial? No campo, o turismo “combate a desertificação”. Em Lisboa, provoca a gentrificação. A coerência, pelos vistos, depende da densidade populacional por quilómetro quadrado.
E como cereja neste bolo de coerência líquida, temos o caso de Ricardo Robles, vereador do Bloco em Lisboa, que condenava com veemência a especulação imobiliária… enquanto comprava um prédio em Alfama por cerca de 347 mil euros, vendido a preço de saldo pela própria Segurança Social, e o colocava à venda por mais de 5 milhões. Para alojamento local, claro está. Tudo legal, tudo legítimo, e tudo exactamente aquilo que passava o tempo a denunciar nos comícios. A revolução, afinal, também sabe fazer contas de cabeça… sobretudo quando a margem de lucro ultrapassa os 1.300%.
Mariana, herdeira do púlpito, faz da habitação o seu campo de batalha, esquecendo-se de que muitos dos seus apoiantes têm mais do que uma casa, e não, não são barões imobiliários. O discurso do “pecado patrimonial” serve mais para castigar do que para resolver.
O teatro da política e a plateia em fuga
As irmãs Mortágua são sinceras. Acreditam mesmo na sua missão. Não estão a fingir. Mas confundem militância com política, fé com gestão pública e teatro com transformação. Querem mudar o mundo, mas começam sempre pela narrativa, não pela realidade.
Talvez sejam vítimas de um pavlovianismo ideológico, onde cada palavra como “mercado”, “lucro” ou “propriedade” desencadeia automaticamente salivação retórica e reflexos de indignação. Cresceram sob o sino da revolução e, como nos cães de Pavlov, qualquer ruído que lembre capitalismo ativa nelas um automatismo de denúncia. Não pensam como indivíduos livres, mas como extensões lógicas de um programa instalado no disco rígido ainda em tenra infância. Foram educadas para reagir, não para analisar. Para combater, não para pesar. A doutrinação foi eficaz, e a autonomia mental, sacrificada no altar da coerência genética.
Portugal precisa de quem resolva, não de quem proteste. E se um dia Mariana quiser mesmo regressar como alternativa, terá de abandonar o palco da indignação e entrar na sala de reuniões do compromisso.
Porque, no fim, não é a chuva que é machista. É o discurso que transforma os pobres em personagens decorativas de uma peça que se recusa a sair de cena.
Os sinos da revolução já só tocam para quem se recusa a ouvir mais nada.




