O Novo Ouro da República

Ahhh, os famosos bebés que, reza a lenda, haverão de salvar o nosso querido país da ruína anunciada. À semelhança de outras modas, esta também emergiu num tom quase apocalítico: se não surgirem mais berços, corremos o risco de ver a Segurança Social transformada num buraco negro e de o país definhar por falta de gente que pague impostos. De uma hora para a outra, a parentalidade elevou-se a ato patriótico, como se cada criança nascida fosse um super-herói incumbido de resgatar a nação de decadas de más decisões governamentais. Na prática, a propaganda é simples: quanto mais bebés, mais crescimento económico, mais contribuintes a sustentar as gerações anteriores. Um belo argumento, não fosse a realidade insistir em pregar partidas.

As Contas que não Batem Certo

A questão que se coloca é elementar: quem, no seu juízo perfeito, decide ter filhos quando nem mal consegue pagar a renda de um T1? Em Portugal, pululam empregos precários, contratos temporários e um custo de vida que não combina com o salário mínimo. Depois perguntam: “Mas por que não fazem filhos?” É quase cómico ver as caras de espanto de certos políticos, como se desconhecessem por completo a vida fora dos gabinetes. Falta de creches públicas, de apoios à maternidade, de consultas de obstetrícia, de transportes decentes e de estabilidade profissional. Tudo “pormenores”, ao que parece. Mas, segundo o discurso oficial, devíamos avançar confiantes e pôr a felicidade nacional acima das vicissitudes caseiras. “Reforcem a natalidade e, no final do mês, façam malabarismos com as contas!”, dizem eles, entre elogios a um suposto sentido de dever cívico.

Os Jovens que Não Podem Ficar

Tal como um tesouro que deixámos enterrado, os jovens portugueses foram abandonados à sua sorte ao longo de décadas. Enquanto muitos procuraram melhores oportunidades lá fora, o Estado limitava-se a encolher os ombros — ou, em alguns casos, até aplaudia a redução aparente do desemprego interno. Agora, estranhamente, lamenta-se da falta de gente em idade fértil. A mesma geração que viu amigos e irmãos partir para o estrangeiro é agora bombardeada com o argumento de que deve ficar e, de preferência, reproduzir-se em série. Parece que só contamos para as estatísticas quando somos necessários para pagar as contas de outrem. Nos intervalos, somos meros figurantes no grande teatro político, eternamente convidados a regressar, mas sem grandes promessas de futuro. Fica a sensação de que, por mais que se pinte de dourado, este “património” não é verdadeiramente valorizado.

Da Falta de Gente ao Apelo Patriótico

Se as pessoas não se convencem a ter filhos pela via do “é bom para a economia”, há que puxar pela veia patriótica. E assim surge o rebranding da natalidade: a procriação transformada num gesto de amor à pátria. Já não se fala apenas em índices demográficos, fala-se de salvar “valores”, de manter viva a “essência” do país, de proteger a “identidade nacional”. Um truque retórico que, por momentos, até desperta certa comoção. Mas, como todos os bons números de ilusionismo, a magia dura pouco quando percebemos que o pano de fundo continua inalterado. A precariedade permanece, as políticas familiares são um conjunto de vagas intenções, e a retórica dos governantes continua a ignorar a parte concreta: criar um ser humano implica dinheiro, tempo e estabilidade. Coisas que não se arranjam com discursos ou cartazes políticos.

A Grande Jogada Eleitoral

Há quem diga que este clamor pela natalidade vem dar jeito em época de eleições. Afinal, nenhuma força política quer ser acusada de ter contribuído para o declínio populacional. O plano é sedutor: prometem-se reduções de IRS por cada filho, cheques-bebé e outras benesses que, na prática, raramente saem do papel ou aparecem disfarçadas em pacotes de apoio de difícil acesso. Como seria de esperar, toda a gente quer ficar na fotografia, afirmando-se defensora da família e das novas gerações. Entretanto, no terreno, as creches públicas continuam a ser poucas e as carreiras profissionais, incertas. Assim, assistimos a esse paradoxo: um país que apela desesperadamente a mais bebés, mas que oferece pouco mais do que a boa vontade de quem redige leis. E os jovens casais, tal como náufragos num mar revolto, têm de se virar sozinhos.

A Hotelaria e Restauração como Salvação?

E já que estamos numa de negar a realidade, alguns setores encontram aqui o seu paraíso: a hotelaria e a restauração, entusiasmadas com a vocação turística do país. Diz-se, em tom otimista, que o turismo é a tábua de salvação, que nunca faltará trabalho numa nação cada vez mais procurada pelos visitantes estrangeiros. Mas convenhamos: aquilo que se vê não é precisamente uma montanha de empregos bem pagos e estáveis. É, sim, uma máquina que devora mão-de-obra barata, idealmente vinda de fora, sem grandes exigências de salários ou condições laborais. Diga-se: não é preciso sermos um génio da economia para perceber que, se faltam bebés “nossos” para assegurar o futuro, poderemos sempre importar gente disposta a trabalhar por menos. Os lobbies da hotelaria e restauração esfregam as mãos de contentes, pois conseguem assim garantir pessoal suficiente para servir mesas, limpar quartos e receber os turistas. E, no fim do dia, tudo se resume à capacidade de alimentar um sistema que privilegia lucros imediatos, sem olhar a longo prazo para quem realmente se fixa por cá.

O Paradoxo do Presente e do Futuro

Mas há um detalhe que teima em atrapalhar esta narrativa: o mundo está a mudar, e depressa. Se hoje muitos empregos são precarizados ou mal pagos, e se amanhã a tecnologia vier a substituir boa parte dessas funções, será que faz sentido encher o país de gente — nascida cá ou vinda de fora — sem garantir um futuro minimamente estável? As máquinas e os algoritmos não pagam impostos, mas os humanos sim. Só que, para isso, precisam de trabalho, de equilíbrio, de qualidade de vida. Caso contrário, acabam por sair, repetindo o ciclo vicioso de há décadas. Nenhuma campanha patriótica ou slogan eleitoral pode resolver a contradição fundamental: ou se criam as bases para uma sociedade sustentável, ou arriscamo-nos a pagar, ciclicamente, a fatura de insistir em “rechear” o país sem pensar no que fazer com as pessoas depois de nascerem ou aterrarem no aeroporto.

Entre a Esperança e a Inércia

Toda esta epopeia em torno da natalidade (e da imigração como bengala) reflete a nossa mania de procurar soluções rápidas para problemas profundos. É fácil discursar sobre a urgência de termos mais crianças ou mais gente a chegar de fora para equilibrar as contas. Difícil é construir uma rede de apoios eficaz para quem decide ter família, assegurar políticas de habitação decentes, promover carreiras menos precárias e oferecer saúde e educação à altura das necessidades. E, claro, falta sempre vontade de enfrentar os lobbies que beneficiam de uma mão-de-obra cada vez mais descartável. Enquanto não se atacar a raiz, continuaremos com a fantasia de que o país se salva com berços e vistos de residência.

Se, por um lado, há quem se deixe levar pela retórica do “mais gente é igual a mais prosperidade”, por outro há quem observe, com um sorriso irónico, a incapacidade estrutural de gerir o presente e o futuro. Talvez, um dia, se perceba que apelar à natalidade e à imigração sem investir nas pessoas é tão eficaz como pôr um penso rápido numa ferida profunda. Entretanto, a vida segue, e nós continuamos a aplaudir cada anúncio de “incentivos à família” ou “captação de novos trabalhadores”. No fim, a pergunta mantém-se: quando é que vamos deixar de encenar a epopeia da salvação e, efetivamente, criar condições para que as pessoas — quaisquer que sejam as suas origens — queiram permanecer, prosperar e, quiçá, ter filhos aqui? Enquanto a resposta não chegar, a natalidade continuará em baixa, os políticos em alta voltagem de promessas e a hotelaria à procura de quem lhe abasteça o motor de mão-de-obra. Um retrato típico do país que somos, tão habilidoso em anúncios e tão lento em ações concretas.

Almeida Silva
Almeida Silva
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