Dizem que Deus criou Portugal num raro momento de inspiração divina, quando decidiu derramar o seu encanto mais puro sobre este rectângulo esquecido no canto da Europa, com praias de postal, sol de Instagram e um povo afável por natureza ou resignação. Mas logo a seguir, segundo reza a lenda (e confirma a realidade), enviou para cá a classe política para equilibrar a equação cósmica. O resultado? Um paraíso natural gerido como um daqueles eco-resorts de catálogo: cheios de boas intenções, mas construídos à pressa com madeira “rústica”, telhado a pingar e uma casa de banho que é basicamente um buraco com cortina, mas forrado a cortiça reciclada, para parecer sofisticado.
Somos a única nação do mundo onde o Plano Estratégico para o país cabe numa toalha de mesa de esplanada: “Vamos apostar no turismo.” E apostamos mesmo. Apostamos como quem joga no Euromilhões com os números da sorte tirados do horóscopo. E quando nos dizem que devíamos diversificar, que devíamos produzir algo mais do que experiências e pores-do-sol, respondemos com um sorriso bronzeado e um cálice de vinho do Porto: “Mas para quê, se está a correr tão bem?” Portugal transformou-se no Airbnb da Europa, onde tudo é temporário: o crescimento, os empregos, os residentes.
O nosso petróleo, mas com menos royalties
Portugal na última década vive daquilo que sempre teve: sol, mar e a ilusão de que o turismo nos vai salvar. O setor já pesa mais de 21% do PIB e representa quase metade das exportações de serviços. O Banco de Portugal rejubila com os €27,7 mil milhões deixados cá por turistas em 2024, e o World Travel and Tourism Council proclama 1,2 milhões de empregos. Os ministros sorriem nas conferências de imprensa como se tivessem descoberto petróleo no Beato.
Mas este petróleo é diferente. Aqui, o poço é humano: são os empregados que servem, limpam e sorriem em seis línguas sem ver um tostão de comissão. E ao contrário do petróleo, os royalties evaporam. A galinha dos ovos de ouro é alimentada com salários mínimos, contratos sazonais e rendas impossíveis. O turismo enche as estatísticas, mas esvazia o país de sentido estratégico. Produzimos experiência, vendemos autenticidade e importamos tudo o resto. E há uma pergunta que ninguém faz, porque dá azar: e se um dia isto deixar de chegar?
A conta vem com IVA, IMI e IRS
Custos há muitos, mas estão bem disfarçados entre cocktails com palhinha ecológica. A seca no Algarve? Nada que 366 milhões de euros em dessalinização, quilómetros de tubagem enterrada em nome do progresso e campanhas de “banho em dois minutos” não resolvam. Enterram-se canos como quem planta esperança, desde que o golfe floresça, o hotel brilhe e a piscina esteja cheia para a selfie do hóspede que confunde escassez hídrica com charme rústico.

A habitação nas cidades? Já ninguém quer viver em Lisboa, ou melhor, ninguém consegue. A menos que tenha herdado a casa da avó, seja um nómada digital pago em dólares, ou alugue quartos com casa de banho partilhada a turistas suecos que acham os prédios em ruína “genuinamente autênticos”.
E o novo aeroporto? Está previsto para 2037. Mas em Portugal, “previsto” é um conceito filosófico, como “justiça célere” ou “financiamento europeu bem aplicado”. Serve para prometer, empatar e voltar a prometer em ano de eleições. A única coisa que aterra com regularidade é a falta de visão.
O paraíso em regime precário
Os nossos governantes já não fingem: admitem com naturalidade que somos um país virado para o turismo. Abandonaram qualquer veleidade de soberania produtiva. Exporta-se vista mar, salário mínimo e um sorriso pronto a qualquer hora do dia. E há quem ache isto estratégico.
Sim, temos 1,2 milhões de trabalhadores no turismo. Mas quem entra a servir à mesa, serve à mesa até ao fim dos seus dias. Quem limpa quartos e faz camas, continuará a fazê-lo enquanto os ossos aguentarem. As progressões são nulas, os aumentos marginais. E os grandes beneficiários? Os grupos hoteleiros que descobriram neste país um parque temático fiscal.
Daí a obsessão por mais imigração. Não interessa se há habitação, escolas, médicos ou sequer condições básicas de integração. O que interessa é manter o exército de trabalhadores calados, baratos e abundantes. E quem alimenta essa obsessão não são idealistas do regime, mas lobbies bem oleados que operam nas sombras dos grandes grupos económicos. Precisam de braços, não de cidadãos.
Pagam estudos, subornam discretamente comentadores, alimentam jornais e televisões com publicidade institucional e seduzem políticos com a promessa de mais “crescimento”. Crescimento para eles, claro. Portugal vende-se como destino premium, mas vive-se nele como numa linha de montagem low cost. O lucro é privado, o custo é público. E o silêncio é comprado.
E os lucros? Voam. Muitos grupos estão registados fora, em regimes fiscais amigos. As companhias aéreas trazem turistas, mas deixam migalhas. Aqui, os custos ficam em terra. Os lucros voam a caminho do Luxemburgo.
Alta velocidade, baixa ambição
Poderíamos ter uma rede ferroviária moderna, eficiente e conectada, a ligar Lisboa, Porto e Faro ao resto do país, aquele resto que só existe em discursos sobre coesão territorial. Imagina-se um passe turístico inteligente, que combinasse alta velocidade com paragens no interior: Douro, Beiras, Alentejo profundo. Seria um bilhete para o reequilíbrio do país, uma forma de levar turistas onde a pressão é baixa e o potencial alto.
Mas isso exigia planeamento. E visão. E, acima de tudo, coragem, três palavras que, em Portugal, raramente apanham o mesmo comboio. Por cá, a velocidade é sempre anunciada em PowerPoint, com traçados “em estudo” desde 1994 e promessas que viajam à velocidade de uma automotora dos anos 80. Falta vontade política? Não. Sobra falta de vergonha. E enquanto isso, o interior continua a ver os comboios passarem… quando passam.
O triunvirato da estagnação
Portugal está entregue a uma classe política que confunde estratégia com slogan e governa como quem organiza uma feira de turismo: com stands coloridos, PowerPoints animados e promessas com validade até às próximas eleições. Em cada cartaz de campanha há um “Futuro” em letras garrafais, esse país imaginário que nos acenam do palco, mas que nunca consta no itinerário do poder.
Na pasta das Infraestruturas, sucedem-se ministros com nomes esquecíveis, mais treinados para cortar fitas do que para fazer comboios andar. Multiplicam-se os traçados “a estudar”, as linhas que acabam em Soure e os slides com maquetes que nunca chegam ao terreno. Sonhamos com TGVs enquanto esperamos por um Alfa que não avarie entre Entroncamento e Alfarelos.
No Turismo, a coisa não corre melhor. Apesar de gerirem um sector que vale quase um quarto do PIB, comportam-se como programadores de festas de aldeia: slogans em Times Square, brochuras com sardinhas, e uma agenda cheia de showcookings em Bruxelas e workshops de fado em Tóquio. O que não há? Um plano sério para aumentar o valor por turista, gerir fluxos ou medir o impacto real da invasão turística.
E no topo da cadeia, os Primeiros-Ministros. Todos juram modernizar o país, mas esquecem sistematicamente o interior. Falam de coesão territorial enquanto despejam turistas nos mesmos bairros de sempre, onde já nem os pombos fazem ninho. Prometem diversificação económica, mas ajoelham-se religiosamente ao altar do booking.com. Governam por selfie, distribuem promessas como brindes e respondem à dependência do turismo com a solução mágica: mais turismo.
Governar é servir. E nós continuamos a servir.
Soluções? Há. E nem exigem reinventar a roda. Bastava criar ligações ferroviárias rápidas e fiáveis para o interior, com passes turísticos integrados. Definir metas de despesa média por turista, por região e por época, em vez de contar cabeças como se estivéssemos a medir enchentes num centro comercial durante a Black Friday. Taxar o consumo de água em zonas críticas, com coragem e critério. Apostar nos produtos locais, no turismo fora de época, em valor em vez de volume. E reestruturar o Visit Portugal, trocando folhetos por dados, palmadinhas por métricas.
Mas tudo isso exige trabalho. E pior ainda: exige escolhas. E no regime político nacional, escolhas só se fazem se não doerem nas sondagens. Porque governar exige sacrifício, e isso, por cá, só se pede ao contribuinte.
Até lá, continuaremos neste Airbnb a céu aberto que chamamos país. Servimos sangrias, vendemos vistas e alugamos a alma das cidades a preço de saldo. Quando nos perguntam o que estamos a fazer para o futuro, sorrimos com a cordialidade de quem serve à mesa há vinte anos e respondemos, com orgulho: “Venha cá passar uns dias. Vai ver que isto é maravilhoso.”
Porque é.
Sobretudo se não viver cá.




