Primeiro Ministro de Portugal a sorrir com os braços erguidos, submerso num mar de morangos, com expressão alegre e mãos a sinalizar "OK". Fundo de campo verde com céu azul e nuvens. Contraste entre abundância agrícola e figura simbólica do empreendedor.

A Nação Que Ainda Cava à Mão

Portugal é um país onde o sol brilha, os campos florescem e os governantes tiram selfies em estufas cobertas de plástico. As estatísticas cantam louvores à agricultura nacional, apontando para o crescimento das exportações e para o sucesso dos frutos vermelhos. Mas por trás dos morangos que brilham nos folhetos de supermercado, há uma realidade menos fotogénica: a de um país que trocou a inovação pela submissão, e que transformou o trabalho humano no adubo do seu próprio atraso.

Portugal perdeu a revolução industrial porque sempre teve mão de obra barata. Perde agora a revolução agrícola pelo mesmo motivo.

A glória dos morangos, e a tragédia de quem os apanha

Todas as primaveras, as reportagens voltam: estufas repletas de morangos, trabalhadores agachados desde as sete da manhã, e o agricultor sorridente a elogiar a frescura da colheita. O país aplaude. Os jornalistas elogiam. Os ministros repetem a frase do costume: “Portugal é uma potência agrícola”.

Mas ninguém pergunta quem dobra a coluna para endireitar o PIB.

Num país onde a dignidade laboral é tratada como luxo, a agricultura tornou-se um espelho distorcido do sucesso. São milhares de imigrantes, muitos sem documentos, sem contrato, sem voz, a viver em contentores, a trabalhar por trocos, e a ser rotativamente substituídos assim que já não servem. É o milagre agrícola português, uma máquina de lucro movida a carne humana.

O produtor português e a tecnologia que assusta

Enquanto a Holanda exporta 129 mil milhões de euros em produtos agrícolas com apenas 2% da população activa no setor, Portugal, com quase o dobro da área agrícola e 3% da população ativa no campo, exporta uns modestos 10.700 milhões. Um décimo do valor, com mais gente, mais terra, e mais sol.

A diferença? A Holanda investiu em tecnologia, robótica, automação e inteligência artificial. Portugal investiu em indianos e nepaleses.

Porque para o “empreendedor agrícola” português, não há nada como o toque humano. Valoriza-se o gesto tradicional, o suor autêntico, a colheita artesanal feita ao amanhecer, um romantismo produtivo que enternece qualquer governante em visita ao campo. Robôs? Isso é para os países que não sabem o que é uma enxada.

Quando o modelo não dá, multiplica-se a mão de obra

Se Portugal quisesse exportar tanto como a Holanda, mantendo o seu modelo atual, precisaria de quase dois milhões de pessoas a trabalhar na agricultura, mais de 11 vezes o número atual. Ou seja, cada freguesia teria de adoptar o seu próprio campo de framboesas, com três turnos por dia, sete dias por semana.

Enquanto um agricultor holandês gera mais de 1,1 milhões de euros por ano em exportações, o agricultor português rende uns tímidos 65 mil euros. E não é porque o sol deles brilha mais. É porque em vez de apostarem em “resiliência cultural”, apostaram em robótica, sensores e engenharia de ponta.

Portugal, pelo contrário, continua a fingir que pode competir com enxadas e estufas improvisadas, convencido de que o segredo está em encontrar mais braços, e não melhores soluções.

A tradição nacional de fazer mais com menos… dignidade

O modelo agrícola português é uma relíquia feudal adaptada à economia de mercado. Substituiu o feitor pelo intermediário, o pelourinho pela carrinha de nove lugares, e o chicote pelo salário mínimo.

Enquanto outros países desenvolvem maquinaria inteligente e sistemas de irrigação por satélite, nós desenvolvemos um talento único para ignorar a modernidade. E quando faltam braços? Importam-se mais. Legaliza-se depois. Ou não.

É o modelo perfeito: baixo custo, alta rotatividade, lucros constantes. O investimento é mínimo, o retorno é maximizado. E os direitos laborais? Ficam enterrados junto das raízes.

Empresário agrícola dá entrevista televisiva junto a estufas de morangos, com trabalhadores e contentores habitacionais improvisados em segundo plano.
Entre estufas e contentores, a televisão entrevista o “herói agrícola” nacional. À sombra da câmara, alinham-se os verdadeiros alicerces da colheita.

O ciclo infinito da exploração disfarçada de progresso

Os empresários agrícolas portugueses não querem apenas mão de obra barata. Querem mais. Sempre mais.

Clamam por mais imigração “para colmatar a falta de trabalhadores”, como se isso fosse uma necessidade nacional e não o sintoma de um modelo económico podre. Incentivam políticas que abrem portas sem critério, não por solidariedade, mas para garantir que a máquina de exploração nunca pára.

A cada nova colheita, um novo grupo de trabalhadores entra no sistema: promessas de contrato, promessas de legalização, promessas de futuro. Mas só colhem framboesas. E ilusão.

Quando já não aguentam, são substituídos. O ciclo continua. As empresas mudam de nome. O Estado faz de conta. O país aplaude o “crescimento sustentável”.

Governos cúmplices, supermercados hipócritas, sociedade anestesiada

Os governos, todos eles, preferem exibir números a enfrentar realidades. Disfarçam estatísticas de sucesso com uma retórica de “internacionalização da produção”. As inspeções laborais são raras, as penalizações simbólicas, e os incentivos europeus continuam a cair nos mesmos bolsos.

Os supermercados, esses paladinos do marketing ético, falam em “valorizar os produtos nacionais” ao mesmo tempo que impõem preços miseráveis aos produtores. E os produtores, por sua vez, comprimem os salários de quem realmente faz o trabalho.

E o consumidor? Compra, consome e esquece. É mais fácil ignorar a origem do morango do que a origem do problema.

Uma agricultura sem futuro porque não acredita no futuro

O drama não está apenas na exploração. Está na ausência de futuro. Que plano de carreira existe para um apanhador de fruta em Portugal? Nenhum. Não há formação, não há progressão, não há dignidade.

A agricultura, tal como está, não é um setor de futuro. É um cemitério de oportunidades. Um beco onde se entra pobre e de onde raramente se sai com algo além de dores nas costas e um passaporte estrangeiro na mão.

A perpetuação do atraso

Portugal continua a ajoelhar-se perante o mito da terra. Celebra a agricultura como se fosse sinónimo de identidade, quando é apenas o espelho do atraso.

Enquanto os outros investem em cérebros, nós continuamos a explorar espinhas. Enquanto se fala em “transição digital”, nós continuamos a medir sucesso pelo número de camponeses ao sol. E enquanto a Europa fala em “resiliência rural”, Portugal aplica o conceito ao trabalhador que aguenta mais uma hora sem água.

O verdadeiro produto de exportação de Portugal não é fruta. É dignidade transformada em estatística.

Se a revolução agrícola do século XXI está em curso, Portugal não está atrasado. Está ausente.

E a vergonha, essa, continua por colher.

Antónia Pimentel
Antónia Pimentel
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