Idosas rezam em cemitério português enquanto crianças mascaradas de Halloween dançam ao fundo

Dos Santos à Sacarose

Diz-se que o 1 de Novembro é Dia de Todos os Santos. Mas, ao ritmo a que avançamos, talvez devesse ser antes o “Dia de Todos os Centros Comerciais”, ou, para sermos teologicamente rigorosos, o “Dia da Ressurreição do Consumo”. Em Portugal, ainda se vai dizendo missa e visitando campas. Mas cada vez mais se ouve “trick-or-treat” entre prateleiras de abóboras no Lidl.

Enquanto os Estados Unidos celebram o Halloween com disfarces, guloseimas e abóboras iluminadas por dentro, nós por cá equilibramo-nos entre as flores no cemitério e as máscaras do Chucky no corredor dos cereais. Uma espécie de missa com zombies. E a pergunta impõe-se: celebramos os nossos mortos ou só choramos quando a conta do supermercado ultrapassa os vinte euros por meia dúzia de guloseimas para os miúdos?

Entre a vindima e o Natal

Tudo começa em Roma, quando o Papa Bonifácio IV, por volta do ano 609, decide consagrar o Panteão a Santa Maria e a todos os mártires. Nada de abóboras, nem fantasmas, apenas santos, sangue e uma fé ardente. A data original era 13 de Maio, mas, como tudo na vida, e na Igreja, houve um “ajuste estratégico” e passou para 1 de Novembro. Porque não há nada como encaixar a santidade entre a vindima e o Natal.

Com o tempo, o Ocidente católico abraçou a ideia, um feriado para todos os que, sem tempo de antena, chegaram ao céu. A ironia? Celebramos todos esses anónimos santos, enquanto ignoramos todos os vivos que fazem o bem em silêncio. Porque esses, claro, não recebem esmolas nem servem para vender porta-chaves na loja paroquial.

Quando a terra tremeu e os santos falharam

Portugal, esse país litúrgico e sísmico, celebrou o Dia de Todos os Santos de 1755 com um tremor de terra, um incêndio e um tsunami. Deus não apareceu, mas o Marquês de Pombal sim, prova de que, em Lisboa, nem o diabo faltou à festa. Desde então, a data ficou colada a uma das maiores tragédias da nossa história. Ainda assim, continuámos a celebrar com flores, velas e um fervor resignado, como quem já sabe o que a terra pode engolir.

Curiosamente, em vez de vermos o 1 de Novembro como um dia para pensar na efemeridade da vida e na fragilidade das cidades mal planeadas, aproveitamo-lo para… descansar. E comprar dois quilos de castanhas. Com sorte, ainda nos sobra tempo para escolher uma máscara de esqueleto para a festa de Halloween da escola dos miúdos.

Finados, esse feriado que já nasceu morto

A 2 de Novembro celebra-se o Dia dos Fiéis Defuntos, mas não vá pensar que isso impressiona alguém. Não é feriado, e o telejornal fala mais do estado do tempo do que da eternidade. Rezar pelas almas penadas? Só se forem depenadas pelas compras a crédito.

Ainda assim, alguns resistentes persistem, maioritariamente idosos. Há quem vá ao cemitério, acenda velas, deixe flores. Mas, em muitos casos, é mais um gesto herdado do que sentido. Afinal, vivemos num país onde cada vez se recorda menos e se consome mais. As almas esperam orações, mas recebem silêncio.
E mesmo esse silêncio, se possível, que venha entre a passagem pela pastelaria e a fila do talho. Já não há tempo para rezas demoradas, apenas para uma visita apressada, porque o tempo escasseia e a agenda não perdoa. Deixa-se uma vela a pilhas, porque é mais prática. A flor, se vier, é de plástico, para durar até ao próximo ano. O luto tornou-se prático, higiénico e com horário de funcionamento.

Pão-por-Deus, tradição que já ninguém entende

Há quem ainda o chame de “pão das almas”, mas o espírito original já anda tão perdido como um vegan num churrasco brasileiro. Os miúdos batem às portas com sacos de supermercado reciclados, ou não, repetindo frases que não entendem, mas sabem que dão direito a rebuçados e chocolates.

Historicamente, o “Pão-por-Deus” era uma esmola pelos defuntos, enraizada no século XV e revigorada após o terramoto de 1755. Hoje? É um híbrido entre ritual e gula. E ninguém sabe bem por que razão ainda existe. Como o CDS, ninguém tem coragem de o enterrar.

Em tempos, era um gesto de partilha e oração, uma forma simples de manter viva a memória dos que partiram. Hoje, é uma corrida ao doce mais caro, onde a fé deu lugar ao açúcar, e o gesto perdeu o sentido. As crianças, já não rezam pelos defuntos, mas sabem distinguir um Ferrero Rocher de um chupa-chupa do Aldi. Os adultos, por sua vez, espreitam pela janela, com expressão de frete, divididos entre a nostalgia e o receio de ficarem sem chocolates. Já não se dá com alma. Dá-se por convenção, por inércia… e para não ficar com fama de forreta na rua inteira.

Halloween, quando as bruxas vendem melhor que os santos

E nos Estados Unidos? Ah, meus amigos, ali o santo é o dólar. O Halloween foi beber do paganismo celta, Samhain, da liturgia cristã, All Hallows’ Eve, das migrações escocesas e irlandesas, e depois foi à Disney. Nas décadas de 30 a 50, o “trick-or-treat” espalhou-se como uma praga simpática, ajudado por campanhas da UNICEF, da Hershey’s e da Coca-Cola. Resultado, uma celebração que é tudo menos religiosa.

As crianças que pediam rezas pelas almas dos outros passaram a pedir doces por conta própria. E a lanterna, que era um nabo, sim, um nabo, transformou-se em abóbora. Porque, claro, o nabo americano não tem prestígio. Já o açúcar, esse, é rei.

A partir daí, o Halloween cresceu como só as coisas que não têm alma conseguem crescer: rápido, vazio e altamente lucrativo. Hoje, é um festival de disfarces importados, com temas que vão de bruxas a unicórnios, passando por zombies e super-heróis com etiquetas da Amazon ainda penduradas. Não se celebra a morte, celebra-se o marketing.

As lojas preparam-se com meses de antecedência, os bairros decoram-se como cenários de filme de terror, e os adultos investem mais tempo a escolher o fato do cão do que a pensar no significado da data. Em vez de invocarmos os mortos, andamos mascarados de mortos-vivos do consumismo.

E no fim, sobra um saco cheio de calorias e um vazio difícil de engolir. Porque o Halloween moderno não quer saber de santos, nem de almas, nem de memórias, quer é um bom pretexto para vender. E nisso, convenhamos, os americanos são santos milagreiros.

Portugal importa tudo, menos o espírito

Hoje em dia, basta visitar um supermercado entre Outubro e Novembro para perceber que estamos numa encruzilhada civilizacional: de um lado, flores para o cemitério; do outro, fantasias de vampiro para bebé. Um corredor para a fé, outro para o folclore. Um país dividido entre rezar e pedir guloseimas, entre a alma penada e o marketing mórbido.

Em 2013, o feriado de Todos os Santos foi suspenso por um governo que não queria santos, queria metas do défice. Em 2016, voltou. A Igreja venceu o Excel. Mas será que alguém notou? Porque enquanto os adultos debatem feriados com ar grave, os miúdos decoram a escola com morcegos fluorescentes e pintam abóboras. E os anúncios? Tudo Halloween. Tudo americano. Tudo sem memória.

Nos Estados Unidos, o Halloween é uma verdadeira economia do medo: mais de 13 mil milhões de dólares por ano, com três mil milhões só em guloseimas. Decorações, fantasias, abóboras, máscaras e lucros. É o único dia em que se pode bater à porta de um estranho e sair com um snack, e ninguém chama a polícia.

E por cá? Gastamos pouco, rezamos menos e compramos só o suficiente para parecer que entrámos na brincadeira. Ainda assim, as marcas não desistem: cartazes, promoções, e até Black Friday antecipada. O que antes era um dia de recolhimento e memória, é agora um pretexto para vender televisores com 20% de desconto e colocar máscaras do Freddy Krueger ao lado de velas com imagens de santos e cheiro a baunilha.

E daqui a cem anos? Continuaremos a visitar campas… ou a saltar por cima delas vestidos de zombie?

Crianças mascaradas de Halloween com sacos de doces num cemitério português, entre campas e velas
Grupo de crianças mascaradas de bruxas, vampiros e zombies celebra o Halloween num cemitério tradicional português, rodeado de campas, velas e flores do Dia de Todos os Santos.

Entre a cruz e o código de barras

O que nos resta, afinal? Um país que acende velas em nome da memória, mas também em nome da estética de montra. Que enfeita campas com crisântemos e prateleiras com abóboras. Que pede pão por Deus de manhã e doces importados ao fim da tarde.

A verdade é simples: onde nós ainda tentamos honrar os mortos, eles honram os franchisings. Onde nós acendemos velas, eles acendem LEDs. Nós temos fiéis defuntos, eles têm clientes fidelizados.

Mas sejamos honestos, o que é que esperávamos? Para uma geração que já não distingue um terço de uma pulseira de festival, rezar por almas penadas soa mais a enredo de série de terror do que a acto de fé. A Igreja perdeu o seu appeal. O inferno já não mete medo, só calor. E, convenhamos, é muito mais divertido pintar a cara de zombie do que meditar sobre a salvação da alma.

Não se trata de escolher um lado, trata-se de saber se ainda temos algum. Porque, no fundo, o Dia de Todos os Santos era uma celebração do invisível, do espiritual, do eterno. E hoje? Hoje é apenas mais um feriado com rituais vazios, onde rezar cansa e consumir consola.

Beatriz Monteiro
Beatriz Monteiro
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