Há verdades que custam a engolir. Esta é uma delas: Portugal criou o Brasil. E, como qualquer criador distraído, não pensou nas consequências a longo prazo. Séculos depois, cá estamos nós, de coração partido, envergonhados, a ouvir todos os dias sermões vindos de um adolescente gigante, bronzeado e mal-educado, que insiste em culpar-nos por tudo o que lhe corre mal na vida. Um verdadeiro caso de psicologia colonial por resolver.
Durante anos, embalámos a ideia de dois povos irmãos. Acreditámos no mito tropical da irmandade luso-brasileira, alimentado por novelas, bossa nova e promessas de um futuro melhor. Mas chegou a hora de Portugal crescer e enfrentar a realidade: o Brasil já não nos ama, e provavelmente nunca amou. E nós? Continuamos a mandar mensagens às três da manhã, a perguntar se está tudo bem.
Separação amigável com ressentimento vitalício
Enquanto os Estados Unidos conquistaram a sua independência à força de mosquete e pólvora, cortando definitivamente os laços com a Grã-Bretanha, o Brasil conseguiu fazer o divórcio com Portugal sem grandes gritos nem dramas. Tudo muito civilizado: o filho do rei português gritou “Independência ou Morte!”, mas foi num cavalo bonito, com farda engomada e tudo. Nem parecia revolução, parecia desfile de Carnaval.
Mas o mais curioso é que, apesar da separação ter sido pacífica, o ressentimento ficou. E ficou mesmo. Ao ponto de, hoje, o Presidente do Brasil dizer que a verdadeira independência foi quando se expulsaram os últimos portugueses da Bahia. Palavras doces, como se vê.
Os Estados Unidos, que passaram anos em guerra contra os britânicos, conseguiram tornar-se aliados e amigos íntimos. Já o Brasil, que saiu pela porta da frente, passou a atirar pedras para o telhado desde então. Um divórcio amigável, mas com pensão de mágoa vitalícia.
E, no meio desta mágoa eterna, há um detalhe que diz tudo: os brasileiros não dizem que Portugal descobriu o Brasil. Dizem que o “achou”. Como quem tropeça numa pedra. Como se a frota de Cabral estivesse a passear à deriva, a apanhar sol, e de repente: pumba! Terra à vista, que sorte! Que achado!
Ignoram por completo que a epopeia marítima portuguesa foi um projecto nacional pensado ao detalhe, com escolas náuticas, cartas de navegação, astrolábios, caravelas com selo de engenharia e uma teimosia secular capaz de meter meio planeta num mapa.
Mas não. Para o brasileiro moderno, Portugal “achou” o Brasil como quem acha uma nota de cinco euros no bolso do casaco. Ou como quem acha graça a uma piada sem graça, o que, ironicamente, acontece muito por aquelas bandas. Fazem troça, dizem que nos perdemos no mar, que o Brasil foi um erro de cálculo. Pois foi: o erro foi Cabral não ter fingido que era só uma ilha desinteressante, mandar meia dúzia de cartas a dizer que aquilo já pertencia aos espanhóis, e seguir viagem sem olhar para trás. Se tivesse feito isso, talvez hoje tivéssemos mais paz, menos ressentimento… e menos anedotas.

O mito do Éden tropical
Na cabeça do brasileiro, o Brasil já existia, pronto e funcional, antes dos portugueses chegarem. Um paraíso civilizado, com indígenas poliglotas, universidades à sombra das palmeiras e bibliotecas construídas em cipó.
Depois chegaram os portugueses, sujos, comedores de bacalhau. e destruíram tudo. Os índios, que estavam prestes a inventar a penicilina, foram impedidos de escrever a sua constituição porque apareceram uns tipos com barbas e crucifixos. Foi assim que tudo ruiu. Ou, pelo menos, é essa a história que vendem por lá.
A verdade? O Brasil como hoje o conhecemos é fruto de séculos de construção. Foram portugueses que se embrenharam em selvas, enfrentaram febres, serpentes, índios hostis e pântanos intransponíveis para traçar os limites do maior país da América Latina.
O território brasileiro é gigantesco, não por milagre divino, mas porque um punhado de malucos com sotaque de Trás-os-Montes achou boa ideia andar milhares de quilómetros a pé no meio do mato. Foram eles que definiram fronteiras, ergueram cidades, construíram igrejas, criaram rotas comerciais e puseram o Brasil no mapa, literalmente.
E, já agora, uma pergunta que raramente fazem: se a América do Sul foi colonizada quase toda por espanhóis… porque raio é que há tantos países vizinhos e o Brasil é um só? A resposta não está nas estrelas, está no mapa. Está na obstinação de séculos de portugueses que decidiram que aquele matagal tropical ia ser só um país, e não vinte estados em permanente conflito diplomático.
A Espanha colonizou vastas regiões e fragmentou tudo em pequenos reinos e virreinatos, cada um com os seus caciques locais, as suas guerras internas e, mais tarde, as suas independências caóticas. Portugal, com muito menos meios, muito menos gente, mas com uma teimosia genética que desafia qualquer lógica, manteve o Brasil inteiro sob a mesma bandeira.
Portanto, antes de apontarem o dedo ao colonizador português, talvez valha a pena perguntar-se: será que ter um país continental com uma só língua oficial, uma só identidade territorial e uma relativa coesão nacional foi assim tão mau? Se calhar, há dívidas históricas que deviam ser pagas com agradecimentos.
Hello, meu nome é Kevin
Se antes se chamavam João, Maria, António ou Francisca, hoje é tudo Kevin, Bryan, Emily ou Jennifer. A lusofonia, essa coisa bela que nos unia em nome e língua, deu lugar a um verdadeiro casting para reality show de Miami. Já nem o nome é português, agora é “internacional”. Dizem com orgulho: “O nome dele é Maicon.” (Sim, Maicon, que é Michael com dislexia fonética.) E pronto, começa aí o processo de auto-apagamento.
E quem acha que exageramos, é só ir a um cartório brasileiro e consultar os registos: Enzo Gabriel, Dannah Laryssa, Luccas com dois “c”, Henry com “y” e uma legião de Ayshlas, Kamilyns e Kailanes que parecem ter sido concebidos com a ajuda de um teclado avariado.
Não bastava dar pontapés na gramática, agora chutam também a toponímia. O objectivo? Apagar qualquer vestígio de ligação ao português de Portugal e parecer que nasceram directamente em Orlando.
E depois, claro, vem o vocabulário. A prostituta? Já não é prostituta, é garota de programa. Mais recentemente, e para dar um toque corporativo, passou a ser garota do job. Brilhante. Em breve teremos uma consultora independente do rala e rola.
O brasileiro, como quem descobre a pólvora, deu à palavra “ficante” um novo uso digno de análise psiquiátrica. Já não é verbo, é estatuto emocional: não é amigo, não é namorado, não é amante… é apenas alguém que “fica”. Só mesmo no Brasil é que um gerúndio ganha o estatuto de relação.
A criatividade linguística é tal que a língua portuguesa virou argamassa para um edifício em ruínas, onde se empilham palavras inglesas, expressões inventadas e insultos disfarçados de informalidade. Um idioma que já não se entende a si próprio, mas que serve lindamente para legendar TikToks e vender “conteúdo” de autoajuda.
Não falo português! Falo brasileiro!
Hoje, o brasileiro indignado não diz que fala português. Não senhor. Fala “brasileiro”. Porque, aparentemente, falar português é submisso. Colonial. Pequeno. Falar português é quase pedir desculpa por ter nascido com língua, e isso, para o brasileiro, é inaceitável.
Esquecem-se que, se falam uma língua comum de norte a sul, é porque alguém lá chegou com essa língua às costas. Portugal levou a língua, a religião, os monumentos, as instituições. Aquilo que une o Brasil inteiro não é o samba, nem a Globo, nem o TikTok, é a língua. E essa foi importada, embrulhada em sal e saudade.
Mas a transformação, ou melhor, o assassinato lento e festivo da língua portuguesa por parte dos brasileiros é um facto consumado. Já está. Acabou. Não vale a pena continuar a fingir que mais um acordo ortográfico vai remendar esta tragédia linguística. É como tentar colar com cuspo uma jarra que caiu do oitavo andar. Portugal devia, com toda a calma e dignidade, reverter os acordos ortográficos, restaurar a gramática como Camões a ditou, e deixar os brasileiros entregues ao seu destino fonético.
Já não é de estranhar ouvir pelas ruas de Lisboa um sonoro “vou pra casa preparar o bagulho”, dito com a naturalidade de quem acredita que “bagulho” é um conceito universal, profundo, ancestral. E nós, em choque, a tentar decifrar se aquilo é jantar, droga ou um misto dos dois.
A língua, meus amigos, já foi. E nós, na nossa eterna ilusão romântica, ainda achamos que vale a pena dialogar. Ainda sonhamos com o dia em que o Brasil acordará, chorará de saudades da nossa ortografia e voltará de joelhos, arrependido por ter transformado “ficar” num estado civil, “dar ruim” numa teoria filosófica e o gerúndio numa forma de vida.
Entretanto, Portugal continua a tentar agradar. Até o acordo ortográfico aceitou, para ver se o Brasil nos voltava a ligar. Um gesto triste. Como aquele ex que muda de corte de cabelo para ver se a outra repara. E ela? Aplaudiu, riu-se e seguiu com o influencer do TikTok (ou como dizem os brasileiros, TchiquiToqui).
E nós, do lado de cá, ainda achamos que vale a pena manter esta relação linguística viva. Já passou da altura de parar. O Brasil que fique com os seus jobs, os seus bagulhos, os seus ficantes e os seus Kevins. Nós cá ficamos com os nossos Mários, as nossas Lurdes, a nossa ortografia e a santa paz de espírito.
Manual de autoajuda para o português desiludido
Se o estado de alma dos portugueses já anda por um fio, não ajuda abrir o TikTok e levar com mais um vídeo de um brazuca a falar como se estivesse a cantar uma lamúria em falsete. É sempre o mesmo tom afectado, o mesmo ar de quem acabou de descobrir o sentido da vida numa aula de pilates, enquanto nos explica, com ares de superioridade tropical, como deveríamos governar Portugal, educar os nossos filhos e temperar o nosso bacalhau. Tudo isto dito com aquela musicalidade nasalada que nos persegue como um mosquito em Agosto.
A culpa? Do algoritmo, claro, que insiste em colocar-nos todos no mesmo feed lusófono, como se partilhássemos uma alma colectiva. E o resultado? Um desfile de especialistas em trivialidades, com sotaque cantado e certezas absolutas, sempre com uma pequena facada extra no português, só para condimentar.
Está na hora de Portugal seguir em frente. Chega de tentar manter viva uma relação em que só um dos lados ainda acredita. O Brasil é aquele ex tóxico que nunca assume culpas e vive a apontar-nos o dedo. E nós, feitos parvos, continuamos a enviar pastéis de bacalhau pelo correio. Ou serão bolinhos de bacalhau? Até no nome discordam de quem os inventou.
Está na hora de aceitar que a relação acabou. Que há vida para além do Atlântico. Que há outros países para amar e ser amado, e que talvez gostem de nós pelo que somos, sem nos pedirem desculpas por termos existido.
O Brasil? Que siga o seu caminho. Com a sua nova língua, a sua nova história, os seus novos aliados. Que viva bem e que seja feliz. Nós cá estaremos, com os pés no chão, um café na mão e o alívio de finalmente termos fechado a porta à chave.
E, se alguém algum dia nos perguntar o que achamos do Brasil, podemos sempre responder:
— Ah, o Braziu? Temos boas recordações… mas já passou. Agora, queremos sossego.
Fim da relação. Começo da sanidade.




