Cortesia Selectiva e Selvageria Interna

Portugal tem uma reputação mundial invejável: somos aquele povo amável, caloroso, de sorriso pronto e braços sempre abertos para receber estrangeiros. “Bom dia!”, “Se faz favor!”, “Obrigado!” – um manual vivo de boas maneiras, digno de ser estudado pelos povos do Norte da Europa, mais frios e pragmáticos. Mas há um pequeno detalhe que escapa a este retrato idílico: esta doçura desaparece por completo quando a interação se dá entre compatriotas. Entre portugueses, a civilidade é um bem escasso, um recurso que se gasta rapidamente e de forma seletiva. E a pergunta impõe-se: porquê?

O Português: Amável por Conveniência

A explicação mais óbvia e ao mesmo tempo mais deprimente é que a nossa hospitalidade é um ato performativo. Somos um país que historicamente sempre viveu da necessidade de agradar a quem vem de fora: primeiro os reis estrangeiros, depois os mercadores, agora os turistas. A amabilidade é uma espécie de investimento: sorri-se a quem pode deixar uma gorjeta, um comentário elogioso no TripAdvisor ou uma promessa de regresso.

Mas com o vizinho do lado, essa entidade mitológica que confunde espaço público com território pessoal, a cortesia nacional desfaz-se como areia entre os dedos. Ele não traz divisas, nem protagoniza vídeos de TikTok a elogiar a nossa simpatia. Ele apenas existe — e isso, por si só, já é motivo suficiente para ser odiado em silêncio e amaldiçoado em voz baixa.

Amor à Camisola, Ódio ao Próximo

Poucas coisas revelam melhor a nossa predisposição para a violência gratuita do que o futebol. É um desporto que, em Portugal, parece mais uma guerra civil do que um espetáculo desportivo. Não se trata apenas de torcer pela equipa do coração – é um caso de vida ou morte. O simples ato de usar um cachecol do clube errado pode transformar um cidadão comum num saco de pancada ambulante.

São frequentes as cenas de adeptos a agredirem outros apenas porque vestem a cor adversária, como se tivessem cometido um crime de lesa-pátria. Já se viu pais de família a gritarem insultos medievais a árbitros num jogo infantil, e cidadãos aparentemente civilizados a esperarem à saída de um estádio para “explicar” a um jogador que deveria ter corrido mais.

Até as claques, que em teoria deveriam ser expressão de apoio fervoroso, mais parecem exércitos paramilitares prontos a lançar granadas de fumo e coreografias de ódio sempre que algo os contraria — e isso inclui, pasme-se, o próprio clube quando perde. Porque em Portugal, a paixão pelo futebol é tão intensa que, no limite, vale tudo. Menos perder com dignidade, claro. Isso seria uma traição imperdoável à tradição nacional.

O Trânsito Revela a Nossa Alma Selvagem

Se há um laboratório perfeito para estudar a bipolaridade social portuguesa, é o trânsito. No exato momento em que um cidadão se senta atrás de um volante, algo muda na sua composição química. O português pacato transforma-se num guerreiro medieval, pronto a defender a sua faixa de rodagem com a vida se necessário. Aqui, a regra é simples: o que é meu, é meu, e o que é dos outros… logo se vê.

O que dizer daquela prática tão portuguesa de acelerar quando alguém tenta entrar na fila? Ou do clássico motorista que encosta o carro à traseira do da frente a provocar um confronto direto? Como se cada deslocação pela cidade fosse uma recriação de um episódio de Mad Max.

E depois temos a cereja no topo do bolo: o motorista de autocarro que nos vê correr para a paragem, mas que, por uma questão de princípio e filosofia de vida, arranca sem pensar duas vezes. Sim, porque parar e esperar três segundos seria um atentado contra a dignidade profissional da sua classe.

Onde a Inveja É Património Imaterial

Se há uma coisa que une o povo português, mais do que o fado ou o bacalhau, é o ódio visceral ao sucesso alheio. Em Portugal, não se aspira a melhorar de vida – aspira-se a garantir que o vizinho também não melhora. Se um colega de trabalho ganha um aumento, o instinto nacional não é de felicitá-lo, mas sim perguntar-se “o que é que ele andou a fazer” para o merecer.

O fenómeno da sabotagem é tão natural que já nem nos apercebemos dele. Se podemos impedir que um carro entre na fila, aceleramos. Se um vizinho comprou um carro novo, passamos o dia a inspecionar se “deve dinheiro a alguém”. Se há um novo restaurante na cidade, é certinho que haverá quem vá ao Google escrever uma crítica negativa sem sequer ter lá posto os pés.

O Restaurante e a Pior Mesa da Casa

O atendimento em Portugal segue um protocolo específico. Se és cliente habitual e te conhecem bem, tudo corre às mil maravilhas. Mas se és apenas mais um anónimo, o destino já está traçado: serás conduzido à pior mesa do restaurante, aquela ao lado da porta da casa de banho ou no corredor onde todos os empregados passam a despachar pratos quentes a centímetros da tua cabeça.

Isto acontece porque há um princípio sagrado na restauração nacional: as melhores mesas são para alguém importante. E quem é essa entidade mística? Um empresário de fato e gravata, um jornalista conhecido ou simplesmente um cliente que há anos passa lá as tardes a beber bagaço e a contar histórias de caça.

E há ainda aquele momento glorioso em que pedes para mudar de mesa — talvez porque preferes não almoçar ao som da descarga da sanita — e o empregado responde com um sorriso que diz tudo menos “claro, com certeza”. Ficas ali, entre o cheiro a lixívia e a corrente de ar assassina da porta da cozinha, a contemplar os lugares vazios junto à janela, reservados para fantasmas importantes que nunca chegam. É a hierarquia silenciosa da restauração nacional: os melhores lugares não se conquistam com simpatia ou pontualidade, mas com estatuto, cunha ou um pacto invisível firmado algures entre o café e a aguardente. Tudo o resto é paisagem — e tu és parte dela.

A Vizinhança

A relação entre vizinhos em Portugal é um espetáculo à parte, digno de um documentário da National Geographic — mas sem a beleza das paisagens naturais. Se há um lugar vazio à porta da tua casa, podes ter a certeza de que o teu vizinho fará questão de estacionar ali, mesmo que isso implique caminhar mais 100 metros até à sua própria porta. Há um prazer quase primitivo em ocupar território alheio, uma conquista silenciosa que, quando questionada, se resolve com uma resposta clássica: “Então, mas agora temos lugares reservados ou quê?”

Depois, há o vizinho melómano, esse animal sonoro que transforma a varanda num palco improvisado de pimbalhada, kizomba ou qualquer outro flagelo musical da temporada. A qualquer hora do dia ou da noite, os decibéis são lançados como gritos de guerra, numa celebração tribal onde o respeito pelo descanso alheio é um conceito tão exótico como a compostagem urbana. Afinal, na selva dos apartamentos portugueses, quem faz mais barulho é quem marca território.

E não podia faltar o vizinho jardineiro, cuja missão de encher o prédio de vida verde se traduz em cascatas de água suja a escorrer pelas varandas dos andares de baixo. A arte de regar plantas transforma-se, assim, num desporto radical para quem passa nos passeios ou ousa abrir a janela para respirar. Reclamar? Um disparate, claro. Quem critica o escoamento livre de begónias é imediatamente acusado de “não gostar da natureza”.

O Passeio Como Palco da Selvajaria Urbana

Em Portugal, é habitual ver donos de cães a levarem os seus animais a passear longe da sua porta, como se a cidade fosse uma vasta latrina pública. O objetivo é simples e pragmático: garantir que o cão faça as suas necessidades à porta de outro vizinho, nunca à sua. Não vá o destino pregar uma partida e o próprio dono, no dia seguinte, sair de casa e aterrar de sola na oferenda deixada. O espaço público, para estes iluminados, é apenas o sítio ideal para transferir o incómodo para terceiros.

E aí entra o verdadeiro espetáculo: os donos, já satisfeitos com o feito do animal, ignoram o trabalho de limpar o que foi deixado para trás. Afinal, para quê se o cão já cumpriu a sua parte? A responsabilidade, obviamente, fica para quem estiver por perto. Os passeios, então, tornam-se um campo minado de bostas, um desafio para qualquer pedestre que se atreva a dar um passo sem pisar o legado deixado pelos “cidadãos caninos”.

Enquanto isso, o dono segue triunfante, trela na mão e consciência leve, como se tivesse acabado de prestar um serviço público. A bosta fica para trás, como um presente silencioso à comunidade, uma espécie de monumento à incúria quotidiana. Afinal, num país onde a culpa é sempre dos outros, nada mais natural do que transformar o passeio numa galeria a céu aberto de pequenas obras-primas de irresponsabilidade.

A Arte Portuguesa de Invadir Espaço Alheio na Praia

E depois temos a praia — esse santuário natural que, em teoria, deveria inspirar serenidade, contemplação e uma leve comunhão com o mar. Mas não em Portugal. Aqui, mesmo numa extensão de areia capaz de acolher um batalhão, há uma espécie de força gravitacional que atrai automaticamente os corpos para a zona onde já está alguém deitado. Podes estar numa praia deserta, com quilómetros de costa livres, e mesmo assim aparecerá alguém que decidirá estender a toalha a trinta centímetros da tua, como se temesse morrer de solidão ao sol.

E claro, não vêm sozinhos. Trazem consigo colunas de som dignas de um festival de música eletrónica, onde a playlist alterna entre o reggaeton e baladas sofridas de karaoke. A isso junta-se o teatro familiar: discussões épicas sobre o protetor solar esquecido, ameaças parentais gritadas ao longe (“João Miguel, se não saíres da água levas já uma chapada!”), e partilhas generosas de sandes com cheiro que se espalha como nuvem tóxica. O espaço público, uma vez mais, é tratado como propriedade privada — tua, desde que ignores que os outros também existem. Porque a praia, no fundo, é o espelho perfeito do civismo nacional: areia para todos, paciência para ninguém.

Conclusão: Um País de Contradições

No fundo, a nossa falta de civismo reflete um paradoxo: queremos ser um povo amável, mas apenas quando há algo a ganhar. Temos uma necessidade profunda de sermos vistos como hospitaleiros, mas entre nós adotamos um darwinismo social implacável. Somos os primeiros a criticar a falta de civismo dos outros, mas os últimos a reconhecer os nossos próprios deslizes. Se um estrangeiro nos elogiar, inflamos o peito de orgulho. Se um compatriota nos confrontar com uma incivilidade, mandamo-lo “tratar da sua vida.”

O problema do civismo em Portugal não é falta de conhecimento – todos sabemos perfeitamente como nos devemos comportar. O problema é que escolhemos quando e para quem aplicar essas regras. Enquanto isso for feito com base no interesse imediato e não num sentido genuíno de comunidade, continuaremos a viver neste espetáculo trágico-cómico que é Portugal.

Beatriz Monteiro
Beatriz Monteiro
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