Portugal, Desculpa Lá Existir

No dia consagrado a Camões, à Pátria e às Comunidades Portuguesas, o Presidente da República decidiu, com a solenidade de um oráculo de Belém, fazer um discurso que mais parecia uma eutanásia simbólica da identidade nacional.
Numa data em que se esperava ouvir falar de Portugal com orgulho — não aquele nacionalismo bacoco, mas o legítimo reconhecimento de uma história singular — o que se ouviu foi uma espécie de manifesto antropológico em que ser português é, no fundo, não ser nada de concreto.

É difícil dizer se estávamos a celebrar Portugal ou a pedir desculpa por ele ainda existir.

A Pátria como Mistura, o Orgulho como Pecado

Marcelo começou por evocar os povos que passaram pela Península como se estivesse a ler a ficha técnica de um batido genético: fenícios, gregos, romanos, mouros, africanos, judeus, nórdicos, saxões, burgonheses e sabe-se lá mais o quê.
O ponto? Ninguém é “mais português” do que ninguém, porque somos todos uma mistura.
Conclusão implícita: como somos uma amálgama de tudo, não temos direito ao orgulho de sermos algo.

Este é o novo dogma: o orgulho nacional é visto com desconfiança. Só se pode celebrar a diluição.
Só é bem-vindo o português que duvida da própria portugalidade. O que insiste em afirmar-se como português com convicção… esse é, no novo léxico do regime, um extremista em potência.

Portugal como Curiosidade Etno-Turística

A identidade portuguesa, neste discurso, foi reduzida a um acidente geográfico entre retângulo e arquipélagos, que se mede em turistas recebidos, residentes estrangeiros, e portugueses que saíram e (talvez) um dia voltem.
Portugal não foi apresentado como um país com cultura, alma, vontade — mas como uma plataforma logística onde passam pessoas, culturas, bens e onde, eventualmente, alguns ainda falam português.

Marcelo não celebra Portugal: descreve-o.
E descreve-o como quem fala de uma estância balnear multicultural com um bom clima e um passado colonial que convém relativizar com muitas sílabas.

Recriar é Apagar?

O Presidente insiste que devemos “recriar Portugal”. Uma ideia interessante, se não viesse embrulhada numa tentativa de apagar tudo o que ainda cheire a identidade, história ou soberania.
Recriar, neste caso, soa a reformatar: apagar o disco rígido da memória e instalar um novo sistema operativo feito de frases abstratas sobre dignidade, valores universais, sustentabilidade, e outros chavões que servem para tudo — menos para definir um país.

Recriar Portugal sem o que o define é como tentar reconstruir a Torre de Belém com legos reciclados.
É ecológico, é moderno… mas já não é a Torre de Belém.

Camões? Um detalhe poético no meio da dissolução

Ah, Camões. O único poeta que dá nome a um dia nacional, disse Marcelo.
Mas, ironicamente, foi tratado como uma curiosidade exótica no meio de um discurso onde a epopeia portuguesa parecia mais um erro do passado do que uma fonte de inspiração.

Fala-se de epopeias… mas com a culpa pendurada no verbo.
Dos erros do passado, sim. Dos horrores, das falhas, dos desperdícios.
Pouco se diz da coragem, da visão, da ousadia.
E menos ainda se ouve da necessidade de nos reencontrarmos com esse espírito — aquele que fez de um povo pequeno uma civilização maior.

A Identidade como Ameaça

O subtexto do discurso é claro: a identidade portuguesa deve ser desconstruída, não celebrada.
Num tempo em que outros países reforçam as suas raízes, defendem as suas línguas, revitalizam a cultura nacional, Portugal é convidado — pelo seu mais alto representante — a desfazer-se de si próprio em nome de uma abstracção fraterna e “universal”.

Portugal é universal porque é português, não porque se dissolve em tudo o resto.
Mas o Presidente inverteu a lógica: parece acreditar que quanto menos formos, mais aceitáveis nos tornamos.

É uma doutrina estranha: quanto mais apagamos a nossa singularidade, mais civilizados seremos.
Como se a contribuição portuguesa para o mundo só pudesse ser válida se vier desprovida de sotaque.

Uma Condecoração e um Silêncio

No final, Marcelo entregou o colar a Ramalho Eanes.
Um gesto solene, merecido, simbólico.
Mas o contraste foi gritante: enquanto se homenageava um militar que lutou por Portugal, fazia-se simultaneamente um discurso onde Portugal parecia já não merecer luta nenhuma.
Como se fosse tarde demais para o defender — ou, pior, como se fosse ridículo fazê-lo.

Não é a primeira vez que Marcelo opta pela ambiguidade.
Mas neste 10 de Junho, a ambiguidade tornou-se desistência.
Desistência de afirmar quem somos. Desistência de liderar com orgulho.
Desistência de acreditar que Portugal tem, ainda hoje, algo a dizer ao mundo — e não apenas a recordar-lhe.

Conclusão: Marcelo, o Presidente do Pós-Portugal

É preciso dizê-lo sem rodeios: Marcelo Rebelo de Sousa já não acredita em Portugal como Nação.
Acredita num espaço, num conjunto de valores, numa narrativa global onde ser português é apenas um detalhe estatístico.

O seu discurso não é um acidente. É um espelho.
Um espelho de uma elite que já não se revê no povo que representa.
Que acha mais sofisticado dissolver-se no mundo do que afirmar-se com coragem.

Portugal merece mais.
Portugal é mais.

E se o nosso Presidente não consegue dizê-lo no Dia de Portugal, então teremos nós, cidadãos, cronistas, lavradores de palavras, de o dizer em alto e bom som.

Porque se há coisa que o 10 de Junho nos deve recordar é que não precisamos de pedir desculpa por sermos portugueses.
Muito menos ao som de um fado institucional cantado em tom de lamento sociológico.

Gualdim Pais
Gualdim Pais
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