Lisboa, em Junho, é como aquele tipo que quer desesperadamente parecer bairrista, mas, no fundo, não consegue esconder o facto de que cresceu com Wi-Fi num apartamento das Avenidas Novas. Põe uma t-shirt vintage com o logótipo de um bairro que mal conhece, bebe vinho a martelo e come sardinhas na rua como se fosse um autêntico alfacinha, enquanto cita o Zé Povinho para dar um toque “popular”. Mas, claro, o verdadeiro povo, aquele que conhece os becos e as tradições, não foi convidado para a festa. Ao invés disso, temos uma Lisboa encenada, onde a autenticidade é um produto cuidadosamente embalado e vendido aos turistas, com direito a foto no miradouro e hashtag no Instagram. No fim, o bairrismo perdeu-se entre o glamour de quem tenta parecer genuíno e o marketing que quer vender uma tradição já sem alma.
A cidade, nesse mês, transforma-se num enorme palco de malabarismos culturais: tradição de bairro num pé, globalização turística no outro, marketing nos braços e uma bandeira arco-íris amarrada à cintura — tudo bem misturado num cocktail exótico onde há música pimba, sardinhas assadas, ritmos africanos e, quem sabe, até um toque de funk. É a Lisboa do Santo António que tenta ser tudo ao mesmo tempo: bairrista e cosmopolita, autêntica e instagramável, popular e premium. Resultado? Já ninguém sabe se está num arraial da Mouraria ou na final do Festival Eurovisão.
Santo António, esse pobre franciscano, padroeiro dos casamenteiros e patrono das causas perdidas, assiste a tudo lá de cima com um ar entre o confuso e o resignado. Ele, que pregava aos pobres, agora vê-se transformado em mascote de festas patrocinadas, com sardinhas a preço de caviar, manjericos vendidos como se fossem orquídeas raras e a sua Lisboa convertida numa espécie de sambódromo com branding de cerveja. A tradição? Está lá, sim senhor — plastificada, amplificada e sustentada por patrocinadores que veem em Santo António mais um ‘influencer’ com bom alcance no mercado nacional.
Lisboa já não celebra apenas um santo. Celebra a sua capacidade extraordinária de se vender como autêntica enquanto se rende a todas as tendências da cultura global. A alma de bairro deu lugar à alma de hashtag. A festa que começou como procissão transformou-se numa campanha de marketing urbano, onde os únicos milagres que se pedem são bom ângulo de selfie, likes e acesso VIP ao arraial.
E os lisboetas? Esses, ou alinham no circo ou fogem dele. Mas uma coisa é certa: sabem que, neste novo teatro de Junho, a tradição veste-se a preceito, põe batom, tira foto e sorri para a câmara. Porque o verdadeiro milagre de Santo António já não é juntar dois corações — é fazer parecer genuíno o que há muito se tornou apenas espectáculo.
Fumo, Fé e Filas
Quem ainda acredita que a sardinha é um prato simples e popular, claramente não passou por Lisboa durante os Santos Populares. Aquilo que em tempos foi o alimento humilde do povo — assado no meio da rua, com pão de ontem e vinho a martelo — transformou-se numa iguaria digna de chef com estrela Michelin. A sardinha moderna vem servida com storytelling, pão de fermentação lenta e, com alguma sorte, um toque de flor de sal colhida à mão por monges algarvios.
O cheiro a sardinha assada continua inconfundível, mas agora vem acompanhado de uma fila interminável, uma coluna bluetooth a debitar música brasileira e, claro, um vendedor de olhar zen que explica como aquele peixe foi pescado por pescadores meditativos ao largo da costa de Sesimbra, sob influência da lua cheia e da maré emocional.
A cerveja? Esqueçam o sabor áspero e democrático da tradicional loira servida em copo de plástico. Agora reina a “cerveja artesanal com infusão de memórias” — aromatizada com alfazema, marketing emocional e um leve travo a storytelling. Vem servida em copo reutilizável com caução, chapéu de palha com logótipo e, claro, um QR code para desbloquear a ‘experiência sensorial completa’. Porque, aparentemente, já não basta beber: é preciso sentir, partilhar e — se possível — fotografar em contraluz.
E as bifanas, essas heroínas proletárias de carne no pão com molho, também foram para reabilitação gourmet. Deixaram o tacho de alumínio e surgem agora com nomes como “sanduíche de porco ibérico marinado a baixa temperatura” — um conceito que transforma o que era suculento e informal num petisco digno de catálogo de restauração “artesanal urbana”.
É que nesta Lisboa moderna, até a simplicidade precisa de ser reinterpretada. Cada prato tradicional é agora uma “experiência sensorial”, pensada para agradar ao turista e partilhar no Instagram com filtro sépia. A questão é: quando tudo se transforma para parecer mais apetecível… o que é que fica para trás? Talvez só o sabor daquilo que era mesmo nosso.
O Espetáculo da Repetição e da Publicidade
As marchas populares de Lisboa, que outrora representavam o espírito único e genuíno de cada bairro, transformaram-se num espetáculo televisivo digno de um programa de domingo à tarde. Todos os anos, cada bairro tenta provar que é o melhor de Lisboa, mas a verdade é que todos seguem a mesma fórmula: uma letra que exalta a “beleza” do bairro, música que soa sempre ao mesmo e coreografias ensaiadas até ao último movimento, como se fosse uma competição de talentos à portuguesa. A batida é a mesma, os versos são quase gémeos e os trajes são escolhidos não pela tradição, mas pela estética fotogénica, para garantir que tudo encaixe no feed da televisão — tudo embalado para o grande público, pronto para o prime-time.
O resultado é um desfile de identidade pasteurizada, embalado em purpurina e produzido ao ritmo do cronograma televisivo. Se antes havia mistura, improviso e alguma alma, agora há linha de montagem. A criatividade perdeu-se entre a busca pelo prémio de ‘melhor marcha’ e a necessidade de parecer ‘tradicional’ sem parecer excessivamente moderno.
Mas o que importa mesmo não é a marcha em si. É a fotografia. Quem vai brilhar no palco? Os padrinhos e madrinhas, claro — essas figuras selecionadas não pela ligação genuína ao bairro, mas pela ligação ao espaço mediático. Influenciadores de profissão, apresentadores de reality shows ou atores em pausa de novela, todos prontos a fingir que sabem a letra, enquanto dão o seu melhor sorriso de “gente do povo”. A tradição? Está lá… mas sentada na plateia, a assistir, sem convite para o palco.
O Sambódromo Lisboeta
Se o Rio de Janeiro tem o Sambódromo, Lisboa não quis ficar atrás e criou o seu próprio ‘Santódromo’. E onde? Onde mais seria, senão na Avenida da Liberdade — essa artéria da cidade que outrora foi sinónimo de passeios aristocráticos, montras de alfaiates e sombras de plátanos discretos. Em Junho, tudo isso cede lugar a um desfile de brilho sintético e patrocínios, onde o nome do santo quase se perde entre os logótipos de marcas de cerveja, a iluminação LED e os cartazes publicitários estrategicamente posicionados para as câmaras da transmissão televisiva.
A maior avenida da capital, habitualmente território de brunches sofisticados e lojas de luxo silenciosas, transforma-se numa espécie de tapete vermelho popular, onde os marchantes desfilam ao som de músicas repetidas, enquanto os turistas — e os lisboetas curiosos — se acotovelam nas bancadas para assistir ao ‘espetáculo da tradição’. Sim, agora a tradição tem hora certa, lugar marcado e, com sorte, patrocínio.
A espontaneidade que antes enchia os bairros de Lisboa foi empacotada, calendarizada e exportada para o centro da cidade, sob um verniz de espetáculo oficial. A avenida, que era símbolo de liberdade, transforma-se durante uma noite numa montra de encenação — uma espécie de musical à portuguesa com cheiro a sardinha e gosto a publicidade.
Inclusividade ou Diluição da Tradição?
A grande inovação dos Santos Populares — perdão, das Festas de Lisboa, ou será já Festival Lisboa Plural Experience™? — é o rebranding moderno daquilo que era uma celebração de bairro, bairrismo e bica curta, transformada agora num desfile multicultural com tempero internacional e patrocínio transcontinental. Já não se celebram apenas os santos — celebra-se tudo: celebra-se a inclusão, a diversidade, a globalização, e até um pouco de confusão.
Temos artistas africanos, DJ sets com sonoridades da Ásia Central, recitais de jazz, concertos pop para agradar aos que nasceram depois do euro, e até um toque de Bollywood para equilibrar a coisa. Temos o Europride, claro, que é apresentado como a nova alma da cidade — porque nada diz “Santo António” como um desfile arco-íris com coreografia ensaiada e plumas recicláveis.

E assim, Lisboa reinventa-se. Mas a que custo? Será que, ao tentar ser tudo para todos, ainda é alguma coisa para alguém? O bairro perdeu o sotaque, a sardinha ganhou cobertura de espuma de limão e os manjericos já vêm com quadras populares em seis línguas. O resultado é uma festa onde os lisboetas se sentem como figurantes mal pagos num guião escrito por um comité de turismo inclusivo.
E por falar em comités, há um certo fantasma que paira sobre estas festas remodeladas: o da Amália. Sim, a eterna Amália Rodrigues, com aquela sua advertência em tom de fado: “Lisboa, não sejas francesa”. Uma frase que hoje, muito provavelmente, exigiria um aviso de conteúdo sensível, um trigger warning, ou pelo menos um pedido formal de desculpas à embaixada. A música era um apelo sentido à cidade para não perder a sua identidade — mas nos dias que correm, já nem sabemos se a podemos cantar em público sem que alguém fique ofendido ou nos acuse de microagressão cultural. Lisboa já não corre o risco de ser francesa. Corre, isso sim, o risco de deixar de ser Lisboa.
Porque nesta nova Lisboa “para todos”, até o fado parece hesitar entre cantar desgarradas ou versões remix com beats globais. A alma lisboeta, que costumava caber numa marcha, numa bifana e numa quadra popular, agora dilui-se num cocktail multicultural servido em copo reciclável. O turista adora, claro. E nós? Bem, nós tentamos reconhecer a cidade enquanto tiramos uma selfie junto ao mural da “Lisboa inclusiva”.
O problema não é a inclusão — é a substituição. Celebrar o mundo é bonito e até moderno, mas esquecer de onde viemos para parecer mais fotogénicos no mapa internacional é, no mínimo, uma ironia cruel. Lisboa já não se limita a abrir os braços — Lisboa abriu uma loja de conveniência cultural com horário alargado para agradar ao maior número de fregueses.
A Ansiedade Festiva Lisboeta
Há quem diga que Junho é o mês mais alegre de Lisboa. Mas basta dar uma volta pelos bairros para perceber que alegria, hoje em dia, é uma performance altamente curada. Nos arraiais, desfila-se autenticidade em modo encenado: sardinhas no pão para a fotografia, manjericos como adereço de bolso, e um sorriso bem treinado para as selfies. A genuinidade é opcional — o feed do Instagram, esse sim, é obrigatório.
Quem não aparece nas festas certas, com a luz certa, no bairro certo, corre o risco de ser declarado “lisboeta de segunda”. A pressão é real: estar em todo o lado, parecer local, mas com um toque cosmopolita, e ainda carregar um copo de cerveja com o pulso firme. A Avenida da Liberdade, essa antiga artéria nobre, torna-se num safari urbano: turistas com câmaras e locais a fingirem que não estão a fingir. Um ritual colectivo, meio turístico, meio identitário, onde a tradição se esforça por sobreviver à estética.
Lisboa, que antes era uma cidade de fado e de bairro, agora parece mais um estúdio de gravação de reality show. E todos os lisboetas sabem: quem não é visto, não é lembrado. Por isso, a verdadeira festa não é a que acontece nas ruas, nas tabernas e nas ruelas do bairro. É a que acontece nas redes sociais.
Casamentos de Santo António
Não podemos esquecer os Casamentos de Santo António. Para quem ainda acreditava que o amor em Lisboa era coisa simples e espontânea, aqui está a realidade: uma cerimónia coletiva onde o romance surge com patrocínio oficial. Em vez de casamentos discretos e genuínos, temos a superprodução anual da Câmara Municipal, onde os noivos recebem vestido, cabeleireiro e bolo como parte de um pacote cuidadosamente embrulhado em marketing institucional. É o matrimónio transformado em postal ilustrado — bonitinho, fotogénico e com direito a transmissão televisiva. O amor? Está lá, claro. Mas tão bem maquilhado que até parece figurante.

Os casamentos tornaram-se um evento corporativo, um espetáculo televisivo digno de novela, com direito a transmissão ao vivo, pompa e circunstância. O amor virou uma política pública com orçamento municipal e, como tal, precisa de visibilidade. E quem precisa de amor genuíno quando temos luzes de palco e um bom conteúdo para garantir que todos vejam o “grande momento”? Afinal, nada diz mais “felicidade eterna” do que um bom ângulo de câmara e uma legenda estratégicamente pensada.
E agora, o verdadeiro espírito do casamento? Ah, esse já não tem muito a ver com sentimentos profundos ou promessas de vida a dois. Está na foto final, claro, com a hashtag #CasamentosDeSantoAntonio, onde todos fingem que o momento é genuíno, mas, no fundo, está ali mais um momento de visibilidade e promoção de Lisboa como a capital do romance de bolso. É o casamento perfeito para quem quer ser visto, mas não necessariamente para quem quer viver a dois. Se o amor verdadeiro fosse um produto, provavelmente teria sido estampado em pacotes de arroz com uma imagem do senhor presidente a sorrir ao lado do bolo.
O Santo de Lisboa e o Mercado Global
Santo António, apesar de nascido em Lisboa, foi “exportado” para Pádua como quem exporta vinho verde para os Estados Unidos: com sucesso e sem retorno. E não é para menos. Santo António, que um dia foi um frade franciscano de humildade ímpar, tornou-se o único santo verdadeiramente global que nasceu na nossa cidade. Nascido em 1195 na antiga Lisboa, o jovem Fernando de Bulhões, que mais tarde seria conhecido como Santo António, inicialmente não despertava para o santo culto que viria a representar. A cidade de Lisboa, naquela época, estava em pleno processo de reconstrução após a reconquista cristã, e o futuro santo não era mais do que um jovem estudante de teologia. Foi em Coimbra que ele entrou para a ordem dos franciscanos, onde se tornou conhecido por sua pregação fervorosa e, claro, pelos milagres que realizava.
Mas foi Pádua, na Itália, que o consagrou como santo, tornando-o figura central do catolicismo mundial. Curiosamente, foi em Lisboa que ele nasceu, mas, ao longo dos séculos, foi Pádua que acabou por “ficar com ele”. E se na Idade Média os lisboetas ainda o sentiam como seu, com procissões fervorosas e celebrações locais — o Santo António que hoje “veneramos” parece ser mais um produto de exportação. Lisboa faz de conta que ele ainda nos pertence, mas, na realidade, Santo António é agora apenas mais um ícone do mercado global.
E como vende Lisboa o santo que um dia foi reverenciado nas suas ruas e igrejas? A cidade agora encarrega-se de vender-lhe a imagem em aventais, t-shirts e souvenirs baratos, com a cara do santo estampada em tudo — de porta-chaves a imãs de frigorífico. Os turistas adoram, claro, porque nada diz mais “Lisboa” do que esse fervor à la carte, com cheiro a chouriço, pastel de nata e um toque de fado. Afinal, nada como comprar um pedaço da cidade num stand de souvenirs, ao som de música de rua e com a bênção do santo impresso em cada artefacto.
A tradição? Ah, essa já foi engolida pelo mercado, misturada em pacotes turísticos que incluem visita a “zonas históricas” e “momentos típicos”. Lisboa transformou-se numa grande montra de teatro, onde a tradição é apenas mais um espetáculo a ser consumido. O que antes era uma manifestação de fé genuína, agora é uma encenação de consumo. Não importa o fado, a tradição ou a cultura genuína, o que realmente importa é quantos turistas compraram o “souvenir de Santo António” e quantas fotos foram tiradas ao lado das estátuas decoradas, com a legenda perfeita para o Instagram. E, enquanto isso, Santo António, o nosso humilde franciscano, tornou-se um franchise espiritual, com filiais em todas as zonas turísticas da cidade. A sua imagem está em toda parte, mas a sua essência parece ter ficado para trás, perdida no rastro da comercialização desenfreada.
O Espelho de Uma Tradição que Já Não Sabemos Onde Deixámos
Santo António, coitado, ainda por lá anda — mas agora sorri de óculos de sol, estampado numa tote bag ecológica ao lado de uma sardinha vegan. A festa que em tempos se fazia com vizinhos à janela e vinho carrascão, transformou-se num circo de branding e inclusão coreografada, onde o importante já não é celebrar, mas parecer que se celebra… com filtros, hashtag’s e um plano de comunicação aprovado pelo patrocinador oficial.
A tradição, dizem, está viva. Mas parece mais em coma induzido do que propriamente de boa saúde. Já não há janelas abertas com vizinhos a gritar “ó Maria, dá cá um manjerico!” — agora há DJ sets em becos com luzes estroboscópicas, arraiais que parecem festivais de música eletrónica, e marchas que obedecem mais ao guião televisivo do que à alma do bairro.
Há quem veja tudo isto com o entusiasmo de quem acredita no “progresso”. E há outros — discretos, em minoria e ligeiramente embaraçados por soarem como os velhos que em tempos se queixavam que “isto já não é o que era” — que assistem à lenta transformação da festa numa vitrine para turistas. Gente que, ao ver um arraial típico convertido em baile funk, sente um desconforto que nem o cheiro a sardinha assada consegue disfarçar.
Mas dizer estas coisas tornou-se arriscado. Apontar o óbvio é agora considerado saudosismo, ou pior: conservadorismo cultural com cheiro a mofo. É que, numa Lisboa que quer ser moderna, global e instagramável, desconfiar da transformação da festa num espetáculo para consumo imediato é quase um crime de lesa-tolerância.
No fundo, tudo continua — mas de outra forma. Continua-se a marchar. Continua-se a enfeitar a cidade. Continua-se a usar a palavra “tradição” como se fosse um perfume premium: com design, rótulo bonito e cheiro a manjerico. Só não se sabe muito bem o que se está a celebrar.
E talvez seja mesmo esse o milagre moderno: transformar fé em merchandising, espírito de bairro em palco televisivo, e a memória coletiva numa coreografia ensaiada ao milímetro. Lisboa tornou-se um produto. Santo António, uma mascote. E a festa? Uma selfie de grupo onde ninguém conhece o santo, mas todos sabem o ângulo certo.
Afinal, tradição, hoje em dia, é aquilo que passa bem na televisão e não ofende ninguém. O resto… é folclore a mais.