Dia de Portugal

Chega o 10 de Junho e Portugal, fiel ao seu génio multifacetado, consegue enfiar numa só celebração o país, um poeta morto e milhões de emigrantes. É um pacote completo, um menu degustação patriótico: serve-se Portugal como conceito, Camões como símbolo e as Comunidades Portuguesas como sobremesa sentimental. Um dia em que todos fingimos estar de acordo sobre o que somos, quem fomos e para onde (não) vamos. A esquerda alinha no protocolo com um sorriso amarelo, a direita bate no peito como se ainda estivéssemos em Ceuta, e os jovens… os jovens aproveitam o feriado como quem descobre que tem um dia livre a meio da semana: sem pensar muito no motivo, apenas na oportunidade de dormir até mais tarde, ir à praia e fazer planos para a noite.

Mas será que ainda faz sentido este dia? Será que a homenagem a Camões, figura que poucos conseguem verdadeiramente ler, continua a unir o país — ou já começa a parecer um feriado com prazo de validade, a aguardar revisão constitucional e consulta pública? Num país onde até Vasco da Gama já levanta questões identitárias (“não será demasiado colonialista, herói da exploração e da opressão?”), quanto tempo falta até o Dia de Portugal ser alvo do mesmo escrutínio hiper-inclusivo?

Camões: herói nacional ou trauma literário?

Vamos ao centro da festa: Luís de Camões. Nome de rua, de biblioteca, de escola secundária e de prémio literário que quase ninguém nota. Foi o primeiro português a sofrer burnout nos trópicos, a perder um olho numa zaragata obscura e a escrever um poema tão extenso que ainda hoje serve como método de tortura curricular. Um génio, sem dúvida. Mas também, convenhamos, um dos maiores traumas do secundário português. Quem nunca teve de decorar um excerto de Os Lusíadas enquanto sonhava com qualquer coisa menos a epopeia marítima?

A obra-prima chega às salas de aula como um tsunami em caligrafia gótica: 1.102 estrofes cheias de deuses pagãos, referências mitológicas e rimas que fazem parecer que Camões escreveu com um dicionário na mão e uma garrafa de vinho na outra. Forçamos adolescentes a ler versos sobre as ninfas do Tejo e os sete mares como se tivessem a mais pequena ideia de quem eram aquelas ninfas, ou sequer pudessem localizar Lisboa num mapa, quanto mais entender o que significa navegar entre os sete mares. Perguntar a um adolescente sobre a geografia mitológica é como pedir-lhe para resolver uma equação sem saber o que é uma variável. E, claro, falar sobre o Cabo das Tormentas? Só se for para discutir o nome de uma nova marca de roupa. A verdade é que empurramos a obra maior da língua portuguesa para miúdos que já consideram um texto com mais de três linhas nas redes sociais uma autêntica maratona literária. Ensinar Os Lusíadas no 10.º ano é como oferecer vinho do Porto vintage a quem só bebe shots de tequila: não vão apreciar, vão sofrer.

Resultado? Uma geração inteira que associa Camões a angústia e a terror noturno — e que só descobre o verdadeiro sentido da epopeia quando, por alguma reviravolta do destino ou castigo kármico, se torna professor de português. Talvez por isso não celebremos o nascimento de Camões — seria demasiado alegre, demasiado promissor. Preferimos, como bons portugueses, marcar a data da sua morte. Um toque fúnebre, mais alinhado com o nosso espírito de tragédia poética e fatalismo glorioso. Afinal, se fôssemos coerentes, talvez também devêssemos comemorar o dia em que Eça de Queiroz morreu, ou quando acabámos com a monarquia, ou ainda quando privatizámos a PT. Motivos para luto simbólico é o que não nos falta.

Comunidades Portuguesas: amor à distância

E como não lembrar dos nossos emigrantes? Esses heróis da diáspora que trocaram a chanfana pelo schnitzel, o estuque projetado pelo drywall, e que, apesar de tudo, ainda mantêm um cachecol do Benfica pendurado na sala de estar de um T2 em Clermont-Ferrand. São os “portugueses de sucesso”, os “bravos lusos que levaram a pátria no coração” — mesmo quando foram para França lavar pratos ou para o Luxemburgo trabalhar na construção civil, com a bandeira nacional a flutuar no capacete.

No 10 de Junho, são elevados ao estatuto de lenda: recebem honras, aplausos e discursos emocionados onde são designados, com pompa e circunstância, como “pilares da lusofonia” — expressão solene, poética e, convenhamos, mais vazia que uma repartição de finanças ao domingo.

Mas a coisa muda de figura assim que decidem regressar. Aí já não são heróis — são “os que se habituaram a outras mordomias”. Exigem transportes que funcionem, burocracia que se resolva online, salários que não envergonhem a moeda única. Pobres almas. Não perceberam que cá dentro ainda vivemos em 1993, com processos burocráticos que exigem mais carimbos do que passaporte de diplomata e formulários que só faltam pedir a data de nascimento da tia-avó e o NIF do vizinho. O choque é tão grande que muitos voltam para Estocolmo a correr — não pela saudade do frio, mas pela ausência de filas.

Erguemos, no 10 de Junho, um brinde digital aos que se refugiam em Toronto, em Paris ou em Bergen — fugindo do tédio ou da tanga salarial —, mas mal reentram no país são confrontados com o mesmo funcionário público de 2002, agora de óculos bifocais, barriga proeminente, com menos cabelo e mais formulários. E quando algum se atreve a trazer filhos que falam inglês com sotaque nórdico ou francês com acento suíço, a resposta é simples: enquanto pagarem IRC lá fora e investirem cá dentro, está tudo bem. Desde que não venham com ideias.

Portugal unido?

Portugal adora parecer unido, sim, mas só enquanto todos andam na linha e não falam mais alto do que o que é conveniente. A verdadeira união, em terras lusas, é mais um conceito de marketing, algo que podemos exibir no Instagram com uma foto da nossa bandeira a tremular ao vento, enquanto, por baixo da mesa, nas conversas do café, as discordâncias são tantas que só falta a divisão territorial. Somos todos portugueses, desde que todos estejamos de acordo com a mesma ideia de “portugalidade” — e que ninguém questione nada, absolutamente nada, do que temos vindo a fazer. Porque, no fim das contas, não vale a pena questionar o que está mal, quando se pode simplesmente celebrar o que é bonito: uma festa de 10 de Junho, com hinos e selfies, onde a história fica guardada no fundo da gaveta.

A união é sempre exaltada, mas ironicamente só até alguém defender um ponto de vista que não se alinha com a visão do grupo, ou quando um problema demasiado desconfortável para os nossos gostos é colocado à mesa. A conversa vira logo em outra direção. Falamos muito em democracia, em liberdade de expressão, mas a verdadeira liberdade começa a ser questionada no momento em que alguém ousa desafiar a versão oficial do que significa ser português. A portugalidade é, na verdade, um conceito apertado, quase como um traje de carnaval feito à medida: cabe lá o mundo inteiro, desde que todos sigam o mesmo guião, falem a mesma língua e, claro, compartilhem o mesmo entusiasmo pela Seleção Nacional — mas cuidado, não vá o fervor futebolístico dar lugar a questões sobre os valores nacionais ou sobre quem estamos realmente a representar quando nos colocamos no palco global.

Ser português hoje significa estar na onda do “orgulho nacional”, mas sempre que a conversa sai do script, a coisa começa a ser vista como um atentado ao “espírito nacional”. A união só faz sentido enquanto todos caminham para a mesma direção, mas se alguém se atrever a parar e olhar para o lado, questionando o que está realmente acontecendo, então a coisa já não é tão simples. Questionar a tradição? Nem pensar! Revisitar as nossas escolhas passadas? Ah, isso já parece “perder tempo” com discussões que não trazem votos. A verdadeira portugalidade é, no fundo, uma caixa de surpresas que se fecha rapidamente assim que alguém decide mexer nela.

E aqui entra a famosa frase repetida por quase todos os nossos políticos: “A língua é o que nos une”. Como se, numa época em que o inglês domina a comunicação internacional, a nossa língua fosse realmente o cimento que mantém os portugueses unidos. Será que, num mundo moderno onde cada vez mais pessoas falam inglês, a nossa língua ainda tem esse poder de manter-nos juntos? Claro que a língua portuguesa é o que nos distingue, mas será ela o pilar de nossa união no século XXI? E com o próprio Acordo Ortográfico, que já criou tantas divergências, como podemos ainda sustentar que a língua é realmente o que nos une? E no fim, quem se atreve a questionar que a união pela língua já não seja mais uma memória do passado — como a nostalgia de quem já vive no século XXI, mas ainda acha que o Fado deve ser o único símbolo de uma cultura unificada?

Identidade Nacional: Entre a Saudade e o Revisionismo

Portugal tem um problema grave com o seu espelho: só se reconhece com o filtro da saudade e o brilho exagerado da nostalgia. Gosta de se ver bonito — mas apenas pelo retrovisor. É um país que vende o passado como se fosse produto gourmet de exportação, mas evita olhar o presente como ele é: desigual, envelhecido, confuso, e em acelerada mutação cultural. Falamos de identidade nacional como se fosse um monumento intocável… e ao mesmo tempo, já sonhamos com uma versão moderna e “instagramável” desse monumento, pronta para agradar a turistas e hashtags.

Aceitamos a mudança, claro — desde que ela não nos obrigue a mudar. Gostamos da diversidade, desde que ela traga investimento estrangeiro, pratos com nomes exóticos e algum folclore inofensivo para animar as festas do concelho. Mas quando começa a ser habitual ouvir outras línguas nos transportes públicos, ver pessoas de turbante na Loja do Cidadão ou perceber que já não conseguimos entrar num TVDE sem ouvir um sotaque brasileiro a perguntar “você vai querer ir pra onde, meu chapa?”… aí já é exagero. Aí já “mexem com Portugal”. Somos todos inclusivos, desde que a nossa ideia de “portugalidade” não seja desafiada na Praça Martim Moniz ou na Cova da Moura, onde a mistura de culturas é mais visível do que no resto do país.

E, nesse espírito, não é de estranhar que certos setores da esquerda — que no 10 de Junho costumam estar mais ocupados a beijar bandeiras da Palestina do que a erguer a portuguesa — já tenham ensaiado algumas sugestões criativas. Há anos que se fala em suavizar A Portuguesa, esse hino “demasiado bélico” para a sensibilidade moderna. Em 1997, foi António Alçada Baptista, então comissário das comemorações, quem propôs o retoque, desejando remover o tom de guerra e polir as baionetas verbais. Mais recentemente, surgiram petições online a pedir que se substitua “às armas, às armas!” por algo como “à solidariedade, à igualdade!”. Um upgrade emocional, dirão alguns; um downgrade patriótico, dirão outros.

E quanto à bandeira? Ah, a bandeira de Portugal, esse ícone que simboliza tanto o orgulho nacional, mas que, para os estetas revisionistas, já não serve os propósitos modernos. Fala-se em apagar a esfera armilar — demasiado colonial, dizem eles, como se a nossa história fosse uma fotografia desfocada no álbum de família — incómoda, datada, e prestes a ser rasgada antes que alguém pergunte: ‘quem é este senhor de bigode?’ E o que se propõe como substituto? Cristais de quartzo energizados, porque, claro, simbolizam o poder de cura e a boa energia (e quem não ama um bom cristal na prateleira?). Ou, quem sabe, emojis de paz e amor? Isso, sem dúvida, gritaria “Portugal” em um tom globalizado e digital, perfeito para o feed de qualquer influencer consciente.

Não há documentos oficiais que provem que alguém está realmente a ponderar estas ideias — é verdade. Mas, nas redes sociais, a fervura de ideias visionárias nunca esfria. A revolução pode estar a um clique de distância, desde que alguém esteja disposto a escrever uma petição online. Em comentários inflamados, surgem sugestões fantásticas, como uma reunião entre “influencers” que, ao invés de debater sobre política externa, propõem alterações à nossa identidade visual com o mesmo entusiasmo com que discutem um novo filtro do Tik Tok. “Tiramos os castelos da bandeira e metemos flamingos cor-de-rosa”, dizem. Flamingos, claro, porque eles simbolizam a liberdade, o calor tropical e, mais importante, ficam lindos nas camisolas de verão. Nada mais inclusivo do que um flamingo — um símbolo de beleza e naturalidade, tão perfeito para a imagem que queremos passar para o mundo. E, se calhar, até ficaria bem nuns chinelos de praia.

E quem nos impede de evoluir? Afinal, não estamos a falar de qualquer alteração, mas de transformação e progresso, palavras mágicas que ressurgem sempre que alguém pensa em modificar o passado, em nome de um futuro melhor. Tudo, claro, com o aval do discurso mais democrático e inclusivo possível. E, claro, dos votos. Nada como uma bandeira cheia de emojis, flamingos e cristais para nos tornar o país mais diverso e interconectado da Europa. Talvez possamos até vender os direitos de imagem da nossa nova bandeira a empresas de marketing global, com uma edição limitada de mochilas e t-shirts para turistas. Afinal, o futuro é agora, e nós temos de ser vistos como “modernos” e “abertos”.

A única coisa que ainda nos impede de transformar a nossa identidade em algo completamente maleável é a triste realidade de que, entre um filtro de Instagram e uma petição online, o que realmente precisa de atenção continua a ser ignorado. O mais irónico é que, por muito que tentemos modernizar a nossa imagem e cultura, sempre que olhamos para os símbolos que realmente fazem parte da nossa história e identidade, acabamos por querer esconder o que não gostamos de ver — como se isso nos fosse permitir vender uma nova versão mais palatável da nossa história para o mundo. E enquanto isso, as redes sociais, sempre ávidas de um bom conceito de branding nacional, continuam a sugerir flamingos e emojis como o futuro de uma nação.

Entre o orgulho nacional e a culpa histórica

Portugal é um país fascinante, mas também contraditório. Orgulhamo-nos de ser um povo pequeno, mas grandioso, capaz de feitos heróicos nos mares, mas sempre à margem dos detalhes que não convêm. Vivemos numa montanha-russa de orgulho e culpa, entre a glória das descobertas e o peso das nossas heranças coloniais, entre o Fado e o luxo da saudade. Queremos manter a imagem de um país de navegadores, mas sem confrontar os mares revoltos do nosso passado. A nossa história é como um quadro antigo na parede — bonito e admirado por turistas, mas que não se questiona demasiado. E, quando alguém tenta puxar os fios do passado, é melhor mudar de assunto e voltar à nossa saudosa imagem de “heróis do mar”. Afinal, quem gosta de estragar a festa com o lado incómodo da História, não é?

O problema é que, no fundo, temos um orgulho selvagem e impreciso. Dizer que fomos grandes navegadores e que o nosso colonialismo foi diferente é, ao mesmo tempo, uma tentativa de minimizar os aspectos sombrios da nossa história. Afinal, fomos colonizadores gentis, aqueles que espalharam luz onde havia escuridão, que trouxeram civilização aos outros, sem nunca perguntar se eles pediam por isso. Comparado com os ingleses, espanhóis, belgas e holandeses, o nosso colonialismo foi realmente “diferente”. Claro, foram os ingleses que, ao longo da sua colonização, criaram potencias mundiais como os Estados Unidos, onde uma guerra civil foi necessária para se libertarem da opressão britânica. Mas, ironicamente, continuam a venerar os seus “colonizadores”. Já nós, no caso do Brasil, fundámos aquela terra — mas agora vemos com uma certa tristeza que nos manuais escolares brasileiros, o nosso “achamento” é minimizado e reescrito, como se os portugueses nunca tivessem estado lá. Os brasileiros falam da nossa história como uma lenda distante, mas, no fundo, muitos deles são descendentes de portugueses, que partiram para aquela terra numa época em que o Brasil era, literalmente, um pedaço de Portugal do outro lado do Atlântico. E é aqui que as coisas ficam complicadas: enquanto continuamos a ver o Brasil como uma grande vitória de Portugal, os brasileiros mais distraídos falam de nós com desdém, com uma certa raiva que, no entanto, não conseguem negar. E, ironicamente, eles não podem fugir da realidade de que são uma nação construída por portugueses que partiram em busca de um novo mundo. Ou melhor, de um novo país — separando-se de Portugal apenas pelo mar.

E, aqui, surge o nosso dilema: o que fazer com isso? Como lidar com o fato de que Portugal fez parte da História mundial de uma forma que é inconveniente, especialmente quando a nossa versão da História já não cabe no mundo moderno, onde as novas gerações têm acesso a mais fontes de informação? Bem, continuamos a celebrar os feitos passados com pompa e circunstância, como se o país estivesse sempre à frente do futuro, preparado para as mudanças. No entanto, basta uma pesquisa básica ou uma simples conversa mais honesta sobre o passado para vermos que, enquanto celebramos a nossa grandeza, ainda temos muito a aprender com os ecos do nosso passado. E esses ecos, como toda a história não contada, são confrontos de consciência que preferimos adiar.

Mas, no final das contas, como bons portugueses, preferimos abraçar o que somos — com todos os erros, falhas e contradições. Portugal é uma nação construída por muitos, com todas as suas complexidades. Celebrá-lo no 10 de Junho é lembrar que, apesar das nossas falhas, há algo de bom a ser celebrado — a nossa resiliência, a nossa capacidade de acolher o outro e o espírito de superação que caracteriza a nossa história. A nossa História, como qualquer história, pode ser complexa, cheia de sombras, mas é isso que nos torna únicos. Entre o passado glorioso e o presente desafiador, Portugal caminha — sempre com um pé na tradição e outro, um pouco desconfortável, na modernidade.

Até Quando Poderemos Celebrar?

Até quando vamos conseguir celebrar o 10 de Junho sem ferir suscetibilidades? Por quanto tempo mais poderemos cantar A Portuguesa, citar Camões e erguer bandeiras sem que alguém nos recorde que isso “não representa todos”? Quanto tempo falta até este dia ser considerado opressivo, antiquado, uma relíquia identitária que precisa urgentemente de rebranding inclusivo?

Já se ensaia: trocar “Portugal” por “Espaço Geográfico de Expressão Diversa”, substituir Camões por um “Painel de Escritores de Textos Inclusivos” e adaptar o hino nacional para uma versão neutra, sensível e com 15 parágrafos — cada um numa língua diferente, do mirandês ao dari afegão, com estrofes interpretadas ao som de harpa celta, berimbau e sintetizador vegan-friendly. Estaremos a poucos anos de ver propostas legislativas para rebatizar o feriado como “Dia de Todas, Todos, Todes — e Também dos que não se Identificam com Coisa Nenhuma”?

Celebrar Portugal, Camões e as Comunidades Portuguesas começa a parecer um acto subversivo. Não contra a mudança — que é natural, inevitável e, por vezes, saudável — mas contra a crescente pulsão revisionista de apagar tudo o que incomoda o presente. De transformar a História em matéria reciclável, passada a ferro por um algoritmo de moral do século XXI.

Será que, numa próxima onda de “reconstrução simbólica”, vamos mesmo acrescentar ao estandarte nacional uma faixa com emojis interreligiosos? Uma cruz, uma estrela de Davi, um crescente islâmico, um código QR e um girassol? E que dizer da ideia (não tão absurda quanto parece) de criar um novo hino menos bélico, com refrão em tom lo-fi, letra neutra e execução a cargo de um colectivo artístico “descentralizado”?

Até lá, brindemos com o que ainda nos resta da nossa memória colectiva — mesmo que moribunda, mesmo que cheia de contradições — e façamos o esforço de nos rirmos disso tudo. Porque talvez um dia venha mesmo alguém propor que o 10 de Junho se transforme no “Dia Universal das Culturas que Jamais Sentiram Portugal”.

E nesse dia, entre bandeiras neutras, declarações de intenções e silêncio constrangido, restará apenas esta pergunta, a ecoar entre ruínas de glória:
Até quando vamos continuar a celebrar Portugal sem ofender ninguém?

João Brandão
João Brandão
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