D. Dinis – O Despertar de um Rei Desfigurado

Não deixa de ser irónico que o Rei D. Dinis — figura ilustre da nossa História, poeta, legislador e impulsionador da língua portuguesa — ressurja agora com o semblante de alguém que parece ter sido moldado numa aula de artes plásticas para crianças. Nunca esperaríamos que o nosso célebre Rei Trovador, o mesmo que mandou plantar o Pinhal de Leiria, fosse retratado com uma expressão sofrida, lembrando mais um personagem melancólico de filme de terror de baixo orçamento. Mas eis que os nossos tão queridos “aliados” ingleses, a quem tanto veneramos (quase ao ponto de lhes beijarmos os pés), decidiram pôr mãos à obra e oferecer-nos uma “reconstituição facial” que mais parece encomendada num desses sites de lembranças baratas. E, como bons portugueses, vemo-nos subitamente estáticos, sem conseguir disparar uma crítica que seja, talvez por aquela velha subserviência que nos faz aceitar tudo o que é carimbado com o selo Royal Mail.

Uma Coroa de Plástico e o Cabelo de Boneca

Ao que parece, a coroa usada nesta reconstituição poderia perfeitamente ser encontrada numa seção de adereços de Carnaval, no meio de plumas e de máscaras de super-heróis. É certo que a realeza portuguesa teve os seus altos e baixos, mas não precisamos de chegar ao ponto de ridicularizar o rei que, entre outras façanhas, criou as bases para a nossa língua literária. E o cabelo? Esse, dizem, lembra cabelo de bonecas antigas, com uma tonalidade tão incerta que nos faz pensar se, durante a “investigação forense”, o responsável não se teria distraído ao ver um tutorial de penteados grunge no YouTube.

Curioso é que isto nem é propriamente inédito em Portugal. Já testemunhámos estátuas que, supostamente, deveriam personificar figuras históricas, mas acabaram por se parecer com híbridos de banda desenhada. A diferença é que, agora, o despropósito foi desencadeado pelos ingleses, a quem raramente apontamos o dedo. Talvez seja o nosso velho complexo de inferioridade ou, quem sabe, a ilusão de que, no Reino Unido, tudo é feito com um rigor acima de qualquer suspeita. A questão é que a caricatura ficou para a história e, como bons portugueses, lá seguimos, conformados e resignados.

Uma Conspiração Anglo-Saxónica

É fácil imaginar o cenário em Liverpool: um grupo de “especialistas” reunidos num pub, copos de cerveja em punho, celebrando a conclusão da grande façanha de reconstruir o rosto de D. Dinis com materiais de qualidade duvidosa. Entre um trago e outro, alguém se lembrou de que, afinal, o homem tinha sido rei de um país longínquo e solarengo, mas rapidamente a conversa se desviou para o futebol ou para as “memórias de glórias” que ainda acreditam viver. E assim, meio cambaleantes, decidiram finalizar o projeto: “Vamos dar ao monarca lusitano um semblante cansado, perto do delírio, e já agora enfiemos uma coroa digna de uma prateleira de loja dos chineses. Será de bom tom e, quem sabe, até histórico.”

A facilidade com que aceitamos (ou não contestamos) este retrato grotesco expõe um dos paradoxos mais emblemáticos da nossa identidade coletiva: tanto gostamos de apregoar as glórias passadas e a independência nacional, mas, quando nos chegam supostos “especialistas estrangeiros”, ficamos mudos como quem se deixou hipnotizar pela malta que nos vende a banha da cobra. Afinal, como poderíamos questionar quem, do outro lado do Canal da Mancha, goza de uma reputação forjada em séculos de propaganda imperial? Diante de tamanha “autoridade”, limitamo-nos ao encolher de ombros e ao tradicional “Eles lá sabem”.

Da Subserviência ao Completo Ridículo

Diz-se que, desde o Tratado de Windsor, vivemos em perpétua vassalagem disfarçada de aliança. Somos um povo que, mesmo depois de tantas revoluções e movimentos de independência, continua a olhar para a Grã-Bretanha como se fosse a guardiã universal da civilização. Se é verdade que os ingleses têm virtudes, não é menos certo que também têm um talento notável para cometer disparates. Que o digam os inúmeros objetos nos seus museus, cujo processo de aquisição é mais do que questionável. Mas nós, ah, nós fechamos os olhos ao que pode ser criticável e batemos palmas à primeira montra de “experiência internacional” que nos atire uns pós de modernidade.

É por isso que não espanta ver D. Dinis surgir agora com o ar infeliz de quem foi forçado a assistir, nos bastidores, a uma farsa em seu próprio nome. Se pudesse levantar a sua real cabeça, o nosso rei trovador exigiria explicações imediatas, bater-nos-ia à porta e perguntaria: “É isto o que achais de mim, séculos depois de ter apoiado a cultura e o saber?” — ao que, provavelmente, responderíamos com um silêncio embaraçoso, enquanto acenamos timidamente aos “ilustres” senhores britânicos que nos “ajudaram” nesta nobre missão.

Pedido de Reembolso ou Demissão?

Numa situação ideal, alguém dentro do projeto teria a decência de bater com o punho na mesa e exigir um pedido de desculpas, um reembolso ou, no mínimo, alguma correção pública. Mas, lá está, se o trabalho veio de um reputadíssimo centro de investigação ou de uns quantos peritos estrangeiros, quem seria o português ousado que levantaria a voz? A nossa tradição de brandura e de “não fazer ondas” surge de imediato, silenciando qualquer protesto. Por isso, vemos tudo ser aceite com uma serenidade de quem, no fundo, gosta de mergulhar em contradições: enaltecemos a nossa História, mas não nos importamos de a ver retratada como uma caricatura.

Talvez alguém avance com a desculpa de que se basearam em “modelos científicos” e “tecnologia de ponta”. Mas é difícil engolir essa história quando nos deparamos com um resultado que faria corar até os mais indulgentes defensores do experimentalismo artístico. Não seria menos penoso assumir, de uma vez por todas, que a reconstituição saiu ao lado e que a dignidade do nosso monarca merecia mais? Entretanto, os envolvidos no projeto — e possivelmente meia dúzia de políticos — deverão continuar a exibir o busto com uma pompa desajustada, acrescentando mais um capricho estranho à coleção de paradoxos desta nossa nação.

A Hipocrisia de Quem Aplaude

Além do silêncio, há também quem aplauda com entusiasmo forçado, na esperança de assegurar futuros financiamentos ou parcerias. Não vá a nossa crítica ferir suscetibilidades e fechar portas a potenciais subsídios vindos de universidades ou de fundos europeus. É que, em Portugal, muitos daqueles que deveriam defender e preservar a autenticidade histórica preferem a diplomacia ao confronto direto. É mais vantajoso manter a “boa relação” com os mecenas estrangeiros, mesmo que isso implique permitir que a imagem de um dos nossos monarcas mais emblemáticos seja distorcida.

Afinal de contas, quantas vezes não vimos já políticos e académicos portugueses rasgarem elogios a projetos que claramente não fazem jus à realidade? Será por medo de represálias, por dependência financeira ou por pura falta de espinha dorsal? Talvez seja um bocadinho de cada. Enquanto isso, o público em geral, desconfiado mas sem grande disposição para polémicas, lá vai olhando de soslaio para o retrato de D. Dinis, entre o riso e a angústia.

O Contraste do Pinhal Ardido e a “Homenagem” dos 700 Anos

A ironia ganha contornos ainda mais acintosos quando recordamos o legado de D. Dinis na plantação do famoso Pinhal de Leiria, mandado plantar pelo rei para proteger os campos agrícolas dos avanços das areias costeiras e impulsionar a construção naval. Esse pinhal, outrora símbolo do engenho e da visão do nosso monarca, ardeu quase na totalidade em 2017, num daqueles tristes episódios que provam a nossa incúria e desorganização enquanto país. Há apenas alguns anos, vimos as chamas devorarem o trabalho secular de quem, no seu tempo, teve a inteligência de pensar no futuro.

E é agora, já com o pinhal reduzido a cinzas e cotos de madeira esturricada, que nos lembramos de “prestar homenagem” ao Rei Trovador, passados 700 anos sobre a sua morte, apresentando-lhe este retrato patético. Não fosse trágico, seria cómico. Parece que estamos a comemorar a devastação, como se quiséssemos enaltecer um rei com base num fiasco duplo: perdemos o seu pinhal e, simultaneamente, destruímos a sua dignidade histórica com uma reconstrução facial digna de um filme de terror. Uma homenagem retorcida que, em vez de honrar, insulta. E, no entanto, eis-nos aqui, de bandeja estendida, agradecendo a “enorme dedicação” que os nossos amigos ingleses mostraram neste projeto.

O Riso e a Reflexão Final

No meio de todo este surrealismo, a melhor resposta talvez seja o riso. Rir para não chorar, como tão bem nos caracteriza. Mas também rir com um certo laivo de indignação, numa tentativa de acordarmos da nossa passividade e de repensarmos as nossas prioridades. Se, num país que se orgulha de ter dado ao mundo poetas, navegadores e pensadores de renome, não formos capazes de questionar um projeto medíocre, então continuaremos a alimentar esta espiral de subserviência. O rei D. Dinis, se pudesse, provavelmente exigiria uma segunda tentativa, quem sabe até uma terceira, desde que liderada por verdadeiros conhecedores da nossa história — ou pelo menos por artistas que entendam a dignidade de um monarca fundador.

Mas não. Por cá, limitamo-nos a sorrir e a acenar, celebrando os 700 anos da morte de um rei que surge agora transformado em objeto de escárnio, com coroa de plástico e ares de mendicante. De um lado, o Pinhal de Leiria ardeu, arrastando consigo a herança visionária de D. Dinis; do outro, o rosto do monarca foi “queimado” pela suposta ciência que insiste em nos vender fantasias de pub. E assim seguimos, esperando que, um dia, alguém tenha a ousadia de emendar o mal feito. Até lá, que a memória do Rei Trovador paire sobre nós, lembrando-nos de que não basta vangloriar o passado enquanto arruinamos o presente — sobretudo se não tivermos coragem de erguer a voz perante as caricaturas que nos impingem. Afinal, ser português também é saber dizer “basta”, mesmo que o interlocutor seja um snob britânico a beber cerveja à nossa custa e a fazer piadas sobre o nosso passado.

Antónia Pimentel
Antónia Pimentel
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