General romano Quinto Sertório posa confiante com braços cruzados, rodeado por cidadãos modernos em estado de choque e confusão, num contraste satírico entre autoridade clássica e desgovernação contemporânea.

Um General, um Povo e um Problema Antigo

Corria o século I a.C. quando Quinto Sertório, general romano com aspirações de domar a Lusitânia, olhou para os seus novos súbditos e percebeu que tinha um problema nas mãos. Os lusitanos eram valentes, ferozes e absolutamente impossíveis de governar. Não obedeciam a ninguém, mas também não se organizavam sozinhos. Sertório bem tentou impor alguma ordem, ensinou-lhes táticas de guerra, deu-lhes uma estrutura militar… e, no final, foi traído e morto pelos próprios aliados. Um final trágico, mas, sejamos honestos, perfeitamente previsível quando se tenta liderar portugueses.

Hoje, dois milénios depois, a única diferença é que trocámos espadas por burocracia e cabanas por apartamentos mal aquecidos. De resto, a essência continua a mesma: desobedecer por princípio, reclamar de tudo e garantir que ninguém governa este país sem resistência passivo-agressiva.

General romano Quinto Sertório, envergando armadura, aponta com autoridade enquanto treina um grupo de guerreiros lusitanos atentos, num cenário de acampamento militar.
Quinto Sertório tenta impor disciplina aos indomáveis lusitanos — missão arriscada que, como a história provou, acabou em traição.

A Arte Nacional de Estar Sempre Contra

Em Portugal, não há governante bom. Nunca houve. Nunca haverá. E mesmo que houvesse, nós encarregar-nos-íamos de o destruir antes que fizesse estragos positivos. É uma tradição sagrada. Quem se atreve a governar o país tem à sua espera um espetáculo de desconfiança coletiva: se tenta mudar algo, é um tirano. Se não mexe em nada, é um inútil. Se baixa impostos, é populista. Se os sobe, é um ladrão. Somos, basicamente, aquele cliente de restaurante que se queixa da comida antes mesmo de ver o menu.

O mais fascinante é que esta resistência à governação não implica qualquer desejo de autogestão. Nada disso! Queremos ordem, sim, mas sem que alguém tenha o atrevimento de a impor. Queremos mudanças, desde que fique tudo na mesma. Queremos progresso, mas sem sair da nossa zona de conforto. E é assim que o país vai avançando, um passo para a frente, dois para trás e uma pausa para tomar café.

O Governo Sombra do Café da Esquina

Já que não deixamos ninguém governar, criámos um sistema alternativo onde qualquer cidadão pode ser primeiro-ministro sem precisar de eleições: a mesa do café. É aqui que o verdadeiro destino do país é debatido com gravidade e sabedoria. Em menos de meia hora, decide-se como reformar a economia, resolver a crise da habitação e acabar com a corrupção – tudo enquanto se toma uma bica escaldada e um folhado.

Homem gesticula com fervor numa mesa de café portuguesa, rodeado por outras pessoas visivelmente envolvidas no debate, num ambiente típico de pastelaria, com cafés e folhados na mesa.
Na mesa do café decide-se tudo: do orçamento de Estado à convocatória da Seleção. Aqui governa-se com convicção, sem cargo nem contraditório.

Os grandes analistas políticos do país não estão na televisão, estão nos cafés, entre dois dedos de conversa sobre o Benfica e um desabafo sobre o preço da gasolina. E se um dia um desses sábios de balcão chegasse ao poder, provavelmente seria destituído em menos de uma semana, vítima de uma conspiração levada a cabo pelos próprios clientes habituais.

A Burocracia: A Nossa Versão do Coliseu Romano

Se Sertório tivesse tentado marcar uma consulta no SNS, perceberia que a sua missão na Lusitânia estava condenada ao fracasso desde o início. O português não precisa de uma ditadura para sofrer – a burocracia já faz esse trabalho com excelência.

Renovar um documento? Prepare-se para um percurso épico que envolve filas intermináveis, funcionários desaparecidos e um ‘sistema’ que está, na maioria das vezes, em baixo… Em Portugal, o Estado não governa: obriga-nos a lutar por cada pequena vitória administrativa como se estivéssemos a disputar os Jogos Olímpicos da paciência.

E se há uma regra fundamental na burocracia portuguesa, é esta: nada pode ser resolvido numa única visita. Se conseguiu tratar de tudo no mesmo dia, parabéns, está provavelmente envolvido num esquema ilegal sem saber.

A Revolta Seletiva do Português

Outra característica marcante da nossa (des)governação é a forma peculiar como escolhemos as nossas batalhas. Políticos roubam milhões? Encolhemos os ombros. O preço da gasolina aumenta? Bom, é assim a vida. Mas experimente um clube de futebol ser prejudicado pelo árbitro e verá uma mobilização nacional digna de uma revolução.

Os portugueses aceitam aumentos de impostos com um suspiro, mas se alguém mexe nos feriados, pegamos em foices e martelos. Ficamos impávidos perante escândalos de corrupção, mas se nos tiram o lugar de estacionamento à porta de casa, exigimos uma comissão de inquérito. Escolhemos os nossos momentos de revolta como quem atira pedras ao lago: ao acaso, e só para ver as ondas.

O País que Quase Acontece

Portugal é uma nação de possibilidades eternamente adiadas. Podíamos ser uma potência tecnológica, mas os nossos talentos vão brilhar para fora. Podíamos ter um sistema de saúde eficiente, mas optámos por um que transforma consultas médicas em longas jornadas espirituais. Podíamos ser uma referência de inovação, mas preferimos apostar na arte milenar do improviso.

Somos o país do “quase”: quase fomos um império duradouro, quase tivemos um sistema de transportes eficiente, quase acabámos com a corrupção. Mas, no final, tudo se dissolve no habitual fado da procrastinação.

Mulher canta fado com emoção profunda num ambiente sombrio, rodeada por pessoas emocionadas, incluindo um homem com lágrimas nos olhos e um guitarrista em segundo plano.
Portugal: onde até o sofrimento tem melodia, e a tristeza é património imaterial. O país do quase, do fado e da eterna lamúria com fundo de guitarra portuguesa.

Sertório Tinha Razão

Se Sertório ressuscitasse hoje, provavelmente fugiria a sete pés. Em vez de um exército desorganizado, encontraria um país onde todos querem mandar e ninguém quer ser mandado. Um país que não confia no governo, mas que também não confia em si próprio para viver sem ele.

Portugal continua a ser uma experimentação social onde a desconfiança é o ingrediente principal. Nunca nos sabemos governar, nunca deixamos que nos governem, mas sobrevivemos sempre. E, no fundo, essa é a verdadeira genialidade portuguesa: ser um milagre diário de caos funcional.

Agora, se me dão licença, vou ali ao café governar o país por uns minutos.

Gualdim Pais
Gualdim Pais
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